Três anos depois de Aquarius, o pernambucano Kleber Mendonça Filho e a francesa Emilie Lesclaux, diretor e produtora, voltaram a passar pelo tapete vermelho de Cannes, desta vez sem cartazes de protesto, concorrendo uma vez mais à Palma de Ouro, agora com um filme assinado em codireção por Juliano Dornelles: um longa que desafia todas as convenções de tensão dos thrillers já feitos na América Latina. Bacurau troca as reflexões sobre gentrificação de O Som ao Redor (2012) e do longa com Sônia Braga sobre um edifício do Recife por uma linha de suspense arrebatadora, que deixou a imprensa atônita.

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“O filme tem uma atmosfera fascinante e joga com a dinâmica dos filmes de gênero sem ser óbvio”, elogiou o crítico espanhol Nando Salva Grimat, ao fim da sessão para os jornalistas. Risos nervosos, suspiros de assombro, torcidas apaixonadas e um aplauso num momento de virada marcaram a projeção para a imprensa da saga de uma cidade do Nordeste que, num futuro próximo, com drones em forma de disco voador, some do mapa depois da morte de uma ilustre moradora. O desempenho de Silvero Pereira, como um dos habitantes de maior fúria no local, infla a tela com urros, fúria e sangue, numa narrativa com ecos de Mad Max e de Walter Hill (Warriors – Os Selvagens da Noite).

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“O filme se passa em Pernambuco, mas acabamos achando a locação, sem a gente perceber, no Rio Grande do Norte, na fronteira com a Paraíba, no sertão do Seridó. Foi uma viagem com Juliano instrutiva não só para informar a gente sobre o visual e o clima do sertão, como uma sociedade, mas também por se encaixar com nossa bagagem do sertão através do fato de a gente ser do Nordeste e ter tantos amigos que vieram do sertão. O sertão existe forte em quem é nordestino. Temos uma estrutura clássica de uma única rua”, disse Kleber ao jornal O Estado de S. Paulo, que trouxe Sônia Braga para o papel da médica Domingas e uma trupe ainda pouco conhecida para papéis essenciais à trama.

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Wilson Rabelo é quem mais se destaca, no papel do professor das crianças de Bacurau: é ele quem se dá conta de que o lugarejo desapareceu da cartografia brasileira. Esse sumiço condiz com a chegada de um par de forasteiros de moto (Antonio Saboia e Karine Teles) e o início de uma onda de mortas ligada a um grupo de estrangeiros chefiados por Michael, papel do ator e modelo alemão Udo Kier. A relação do filme com o filão ‘nordestern’, o cinema de cangaço, vem por uma frase que servia de lema aos clássicos de Glauber Rocha: “Mais fortes são os poderes do povo”. Em Bacurau, a frase não é dita, mas vivida, num levante em prol da resistência contra a opressão, que traduz uma série de metáforas políticas. Não por acaso, a trilha sonora de Sérgio Ricardo para o cult A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos, considerada um hino de protesto, embala a feérica luta de um povoado contra predadores do exterior, que matam por prazer.

“Cannes é um festival único, que nos permite passar dois dias seguidos ininterruptamente falando com a imprensa internacional sobre o filme que fizemos, com visibilidade para o mundo inteiro”, disse Dornelles que, em duo com Kleber, levou para os créditos do longa uma frase referindo-se ao número de empregos que a produção gerou, em prol da economia da cultura.

Antes de Bacurau, Cannes foi surpreendida por uma trama também voltada para o tema do controle e da exclusão, dirigido pelo ator e documentarista francês de descendência africana Ladj Ly: Les Misérables, uma releitura dos motes sociais do romance homônimo de Victor Hugo, transportado para os subúrbios da Paris dos dias atuais. Na trama, um trio de policiais liderados pelo abusivo Chris (Alexis Maneti) gera uma onda de brutalidade entre jovens de um bairro majoritariamente negro, povoado por muçulmanos e ciganos, ao agredir um garoto que, numa brincadeira, roubou um filhote de leão de um circo. Um drone é testemunha dos atos agressivos de Chris e traduz a visão de Ladj em buscar uma visão fluida, com múltiplos pontos de vista, dos desajustes urbanos da França pobre.

Fora da competição oficial, Cannes se comoveu com a homenagem ao artesão do terror John Carpenter, diretor de sucessos como Halloween (1978), que, aos 71 anos, foi laureado com o troféu honorário Carroça de Ouro. “Há um mistério que me acompanha desde minha primeira incursão por uma sala de cinema, em 1951, quando eu tinha 3 anos, e fui ver Uma Aventura na África, estrelado por Humphrey Bogart, com meu pai. Perguntei a ele onde ficavam aquelas pessoas que eu via na tela e ele me respondeu; ‘Elas moram na luz’. Até hoje, já aos 70, ainda vivo atrás dessa luz”, disse o diretor, que hoje vive compondo trilhas sonoras e escrevendo Hqs.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.