Aventura na selva amazônica (IV)

(BR-319: Rodovia da Ilusão )

Nilda Torres de Castro, Mocinha, cheia de preocupações.

Noite já avançada do dia 27 de fevereiro, segundo dia de nossa ?retirada?, quando batemos na casa de Nilda Torres de Castro Mocinha – como é conhecida. Deu-nos quarto e de manhã uma garrafa térmica de café. Foi a última noite que dormimos sem medo das nossas oito noites de aventura pela selva amazônica, dormindo no jipe em plena floresta, em choupanas abandonadas, em cabine de caminhão e em acampamento de estrada, acuados por onças.

No dia seguinte, atravessamos o Rio Igapó-Açu, de balsa e, ao meio-dia o caminhão nos deixou em Tupana, a caminho de Castanho, de onde seguiríamos para Manaus. Depois de nos dar café, Mocinha falou como presidente da Comunidade São Sebastião de Igapó-Açu. Desfilou os problemas que enfrentam as 53 famílias da localidade com o abandono da BR-319 Manaus-Porto Velho, construída para integrar a Amazônia ao sul do País e ao mundo. Inaugurada em 1982, a rodovia teve vida útil menos de 15 anos. Mocinha queixou-se do isolamento, da ausência dos poderes públicos, da falta de assistência à população, do abandono em que se encontram, da falta de comunicação e transporte da produção agrícola que apodrece na lavoura, da saúde pública e da educação que são muito precárias. ?Somos muito sofridos aqui e de medicamentos só temos Deus e remédio caseiro. As crianças estudam até a quarta série. Muitas querem continuar, mas teriam que sair daqui e longe dos pais vão para o mundo das drogas. Essa é a nossa grande preocupação?, confessa.

Casada com Raimundo, 47 anos, mãe de cinco filhos, 4.ª série, Mocinha lidera cerca de 200 pessoas que moram em Igapó-Açú, comunidade que não chega a 300 habitantes. Já foram mais de 3 mil ao longo de 817 km da BR-31. Igapó-Açú é o começo da selva para quem vai para Porto Velho ou o final dela para quem vem da capital de Rondônia.

Embora hoje cheire a mofo, mantém marcas de uma localidade de muito movimento quando a rodovia era transitável. ?Aqui paravam ônibus de Manaus, Porto Velho, de Humaitá, do sul. Eram carros de todos os cantos. Isso aqui era ponto onde se recebia todo mundo, tanto para dormir como para comer. Hoje, tudo é deserto?, lamenta ela. O local já teve aeroporto e posto de gasolina, hoje tudo no meio do mato. Acredita que se a estrada não tivesse sido desativada, hoje seriam 800 km de vilas, porque ?eram terrenos ligados uns aos outros e todos tinham suas benfeitorias?. Diz que seu povo vive da agricultura e que hoje só produz para consumo próprio porque ?não tendo transporte o produto apodrece na lavoura?.

Ela é favorável à exploração racional da Amazônia, porque ?tem muito o que tirar?, mas para isso ?precisamos do auxílio de um técnico para extrair óleo de copaíba, andiroba, castanha, buriti, assai, o fátua, tucumã, que podemos usar como remédio e alimentação. Temos muito peixe, e podemos caçar para nos alimentar?. Em sua opinião, o sul contribuiu para tornar a estrada intransitável. O Instituto de Proteção da Amazônia – Ipaam – e o Ibama não querem que o povo de fora entre aqui para desmatar a floresta, principalmente o do sul, onde lá não há mais mata. Ela não acredita que a 319 seja reativada porque há interesse dos donos de balsas e barcos que ela não sirva para o transporte de carga. Mocinha citou o ex-governador Amazonino Mendes e o governador Eduardo Braga como os maiores empresários do transporte fluvial. São eles os donos das balsas e dos barcos que fazem a navegação entre Manaus e Porto Velho.

Quanto à saúde pública, informa que não há atendimento e nem assistência. Diz que seu marido não morreu de malária por milagre. ?Aqui a gente reza para não adoecer e quando adoece, reza para não morrer.? Um professor, atingido por um cabo de aço na cabeça quando atravessava o rio, morreu em cima da balsa porque o socorro chegou somente 5 horas depois. Também lamentou a violência na estrada que, deserta, facilita a formação de quadrilha de bandidos que se escondem na mata para assaltar os viajantes, principalmente motoqueiros e ciclistas. Um policial civil, de Castanho, foi assassinado recentemente, quando investigava o furto de uma motocicleta (mataram para levar a moto do policial).

A BR-319 está cheia de histórias, quando não são as onças que atacam, são os homens que matam. Mas Igapó-Açú é ponto turístico, pois lá estão os botos que habitam as águas do rio do mesmo nome, atraindo turistas do Brasil e do exterior.

Afrodisíacos

O pessoal que vive na selva amazônica tem suas receitas para tratamento da saúde com ervas e plantas da natureza, e também conhece formas de como restaurar as forças e manter a potência e o vigor sexual. Afirmam que a carne de araia assada é muito consumida no norte do País por ser estimulante do apetite sexual. Citam também o chá da raiz do cipó cravo, o chá da raiz do capim pugo e o chá da pata-da-anta.

Para alcançar os efeitos, deve-se secar a pata, raspar uma quantidade por vez e depois tomar como chá uma vez por dia. Todos esses produtos seriam muito mais eficientes que o Viagra, Cialis, etc., que hoje são comprados no comércio, garante o pessoal que fala como consumidor da receita natural. O ovo do tracajá é uma verdadeira iguaria em todo o Amazonas. Vale mais que qualquer outro ovo ou carne.

Mas há no Amazonas um fruto muito disputado e que teria inclusive gerado um conflito entre o Brasil e o Japão. É o cupuaçu, que tomamos quando passamos dias na torre do Marielson, num suco divinamente preparado por seu Andrade, que dirigia a cozinha do acampamento da Embratel. Típico da região amazônica, o cupuaçu é rico em propriedades medicinais e alimentícias. Dele pode se extrair suco, licor, fazer sorvete e bolo.

O caroço pode ser torrado, usado para fazer achocolatados. A casca é usada na lavoura como adubo e fertilizante. O fruto é tão importante para o Estado do Amazonas que em maio de cada ano é realizada a Festa do Cupuaçu, na cidade de Presidente Figueiredo, a 115 km de Manaus.

Histórias de cobras e onças

Contam que na selva amazônica há muitas onças e cobras, além de macacos, porco-do-mato e outros animais selvagens. No acampamento, só não comemos carne de cobra. Em um determinado dia, os trabalhadores apareceram com um tatu que pesou 40 quilos. As cobras não metem muito medo por serem muito grandes. Têm dificuldades para se locomover. Mas Sidney da Silva, 30 anos, morador na região de Igapó-Açu, conta que recentemente um moço foi nadar nas águas do Rio Castanho e desapareceu. Foram chamados mergulhadores para encontrar o corpo, pois tudo levava a crer que o rapaz havia se afogado. Helicópteros também vieram em socorro. Depois de dias de busca, deram como encerrada a operação e concluíram que o corpo tinha sido engolido por uma cobra muito grande que é vista com freqüência às margens do rio.

Já as onças são muito temidas. Animais ferozes, devoram as pessoas e os animais caseiros. Mas dizem que não atacam veículos, pessoas em grupo e fogem ao escutar tiros. Izaias Igor Araújo do Nascimento, residente em Manaus e motorista que presta serviços à firma que instala fibra ótica às margens da BR-319, conta que ?foram encontrados o capacete e roupa de uma pessoa na estrada e no local havia muito sangue, acreditando que as onças atacaram, mataram e comeram o cidadão?. O km 402 da BR é conhecido por ?Boca da Onça?, onde elas mais se concentram. Outra história contada, esta por Rodiney da Silva, 27 anos, é a do ciclista que andando pela rodovia levava atrás da bicicleta carne de paca assada. Quando menos esperava, foi atacado por uma onça que abocanhou o churrasco. Ele abandonou a bicicleta e ficou três horas trepado em uma árvore assistindo o almoço da fera. Explicam que a forma de espantar onça é fazer barulho, sendo muito eficiente a batida de uma garrafa de plástico, vazia. Outra providência para tentar sobreviver é trepar numa árvore fina, pois nessas a onça não consegue subir. Há histórias de andarilhos que passaram um dia todo trepados.

Há informações que entre Castanho e Humaitá, 800 km de rodovia na selva, há mais de 300 onças pretas e pintadas. ?É um animal feroz, muito grande e em razão da estrada estar abandonada, as feras ficaram agressivas, com fome e por isso atacam, matam e comem?, afirma Izaias. Segundo ele, as onças estão se reproduzindo muito porque é proibido o abate, ficando cada vez mais perigoso viajar pela BR-319, onde se vê sinais de patas das feras no barro da rodovia, o que víamos com freqüência. O pessoal que trabalha na fibra ótica diz que é comum ver onças atravessando a estrada. Há os que afirmam que muitos dos andarilhos servem de pasto para as feras da selva amazônica. Em 10 dias encontramos meia dúzia desses andarilhos fazendo o caminho entre Manaus e Porto Velho, ou o inverso.

A construção da BR-319: o passado e o presente

Marivaldo Andrade Almeida
conta a história da construção
e da destruição da BR-319.

Marivaldo Andrade Almeida, 45 anos, residente em Castanho, acompanhou toda a construção da BR-319 – Manaus-Porto Velho. Ele, com a família, forneciam alimentação para os trabalhadores. Contou que a construção da rodovia começou em 1967 pela empresa Constran, que teria asfaltado os primeiros l00 km ou levado a obra até Castanho. Em l969, essa empresa foi substituída pela Construtora Andrade Gutierrez que a completou em 1984, quando foi inaugurada pelo então ministro Mário Andreazza. Segundo ele, a construção da 319 foi uma das mais caras do Brasil à época para hoje estar abandonada. Durante 15 anos, a estrada teve tráfego normal. ?A rodovia deu muita vida ao Amazonas porque ela ligava ao resto do Brasil e hoje liga ao nada.? Castanho, hoje com 23 mil habitantes, nasceu em razão da rodovia. Em dois turnos, trabalhavam na abertura da estrada mais de 5 mil homens. Havia acampamentos em Castanho, Igapó-Açu, Rio Jutai e Pequiá.

Para a construção da 319, a selva amazônica ia sendo rasgada, mas a madeira não era industrializada. ?Eles iam desmatando e a madeira ia ficando embaixo da terra?, informou Marivaldo. Contou também que a rodovia contribuiu muito para a colonização da região, com uma agricultura forte e com cultivo de fruticultura. ?Conheci um rapaz que tinha um laranjal e ele saia toda semana com uma D40 lotada de laranjas. Havia outras plantações e fazendas que hoje estão abandonadas.? Às suas margens chegaram a ter uma população superior a 3 mil habitantes. E por que eles foram embora? ?Porque a estrada foi deteriorando. Quando a empresa Queiroz Galvão foi mandada recuperar a estrada, ela não veio para recuperar, veio para destruir, porque arrancava o asfalto; comeu milhões de reais e foi embora e o que fez foi acabar com a estrada.? Hoje, trafegáveis são apenas 164 km de 1.200 km entre Manaus e Porto Velho. Marivaldo diz que há promessa de que em 3 anos a rodovia estará recuperada, mas ninguém acredita. Enquanto isso, ela continua fazendo vítimas, causando prejuízos pelos carros arrebentados, pelas propriedades abandonadas, iludindo até mesmo os aventureiros e amantes da natureza que, se insistirem em viajar pela 319, poderão ser comidos pelas onças que proliferam às suas margens.

Trustes destroem a rodovia

José Raimundo Rodrigues, 56 anos, agricultor, morador em Igapó-Açu, jogou cinco sacos de feijão na carroceria do caminhão que nos trazia a Castanho, deixando igual quantia apodrecendo no campo por não haver acesso até a lavoura e transporte até o mercado consumidor. Zé Raimundo, pai de 8 filhos, aproveitou a carona e foi oferecer o produto a quem interessasse e ao preço que lhe oferecessem. ?Tem que ser assim, porque senão apodrece esse também.?

Sacos de castanha e limão também foram jogados no caminhão, por vizinhos de Raimundo. Toda a produção agrícola da região é transportada de carona, isso quando passa um caminhão pela BR-319 Manaus-Porto Velho. Triste sina de Raimundo, que trocou a Transamazônica, que ajudou a construir, pelas promessas de riquezas para quem se instalasse às margens da BR-319, hoje isolando a todos os que ainda não abandonaram a região.

A rodovia, que foi esperança de milhares de pessoas e a integração da Amazônia, está completamente intransitável, abandonada e morta. Todos afirmam que o truste das balsas em Manaus mandou destruir a estrada. As críticas são unânimes a responsabilizar o senador Amazonino Mendes e o próprio governador do Amazonas, Gilberto Braga. ?Meteram máquinas para arrancar o asfalto e tornar intransitável a BR-319, a mando de Amazonino Mendes e Gilberto Braga, que são os donos das embarcações na região amazônica.?

A denúncia é de Izaias Igor Araújo do Nascimento, residente em Manaus, motorista que conhece bem a BR-319. Ribeiro Sá, supervisor da Embratel na implantação do cabo de fibra ótica entre Manaus e Porto Velho, arremata: ?O pessoal da região diz que a rodovia está abandonada por culpa dos políticos de Manaus, que são donos das balsas. As balsas não podem deixar de existir, pois fazem todo o transporte de cargas e caminhões de Manaus a Porto Velho e eles (os políticos) não têm nenhum interesse de diminuir esse tráfego de balsas?.

Os críticos da situação afirmam que se a BR-319 estivesse em perfeitas condições de tráfego, o transporte de carga entre Manaus e Porto Velho podia ser feito em apenas um dia de viagem. Uma balsa gasta oito dias e cobra R$ l.200,00 por  caminhão. Nelson, paranaense de Marechal Cândido Rondon, motorista e proprietário de caminhão, hoje morador em Humaitá, fala dos bons tempos da 319, quando ele puxava hortigranjeiros entre Rondônia e Manaus: ?fazia a viagem em 14 horas?. Diz que, ao custo de hoje, uma viagem dessas, custaria uns R$ 400,00.

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