BR-319: Estrada da ilusão

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Nem os caminhões escapam
dos buracos cheios de lama.

Nascia o dia 21 de fevereiro, eram 6h50 quando partimos da Pousada Coqueiro rumo a Tupana pela BR-319, com a esperança de alcançar Porto Velho no mesmo dia, mais de 700 km adiante. Não imaginávamos o que nos esperava e que aquela seria a nossa última noite de dormir em um quarto arejado e em colchão macio. Tínhamos informações das condições da rodovia, mas não podíamos calcular o estado em que se encontrava.

A balsa nos deixou no outro lado do Rio Castanho, rio que dá nome à localidade. Tínhamos ainda 100 quilômetros de asfalto, mas na balsa fomos informados que a média de veículos que atravessa o rio é de dois por dia. Esse número nos deu uma idéia do que nos esperava pela frente, concluindo que a rodovia estava deserta, inundada pelas chuvas e cheia de grandes buracos.

Pedro Pereira Farias, 57 anos, dois filhos e três netos, saiu do assentamento Panelão e nos pediu carona para ir até Taquatira, outro assentamento próximo. Lá ele tem lavoura em uma área de 100×900 metros quadrados. Cultiva mandioca, abacaxi e banana, produção que vende em Castanho ou Manaus. Às 8h30min estávamos na balsa do Rio Tupana onde, também, acabava o asfalto. Embora na estrada de chão batido o jipe desenvolvesse bem, depois de rodar 270 km fomos obrigados a usar a tração pela primeira vez para vencer o primeiro grande atolador, o primeiro grande buraco. Como o asfalto havia acabado, a BR-319 passou a ser uma trilha na selva. Começamos a ter consciência do que seria a nossa aventura: carros e choupanas abandonados à margem da rodovia davam sinal de que alguém havia passado por ali e desistido. Começamos a encontrar desmatamento e queimadas na mata à margem da estrada. Despertou nossa curiosidade a existência de postes de madeira fincados de 100 em 100 metros, mas sem fios. Em plena selva, tivemos que reabastecer o veículo com gasolina que trazíamos em galões. Às 11h20, o carro começou a preocupar porque apareceu vazamento de óleo do motor. Antes de chegar a Igapó encontramos os primeiros usuários da rodovia: dois agricultores vinham de moto de uma caçada. ?Caçamos para sobreviver?, foi a justificativa. Ao meio-dia atravessamos o Rio Igapó, mas o problema do óleo persistia, até que Márcio conseguiu solucioná-lo (entupiu o marcador com saco plástico de supermercado). Mas às 14h30, o motor do jipe apresenta um barulho estranho e em seguida o carro fica sem embreagem (o cabo arrebentou, pelo excesso de acionamento). Uma hora depois, atolamos pela primeira vez, isto segundo Márcio, por termos entrado em 2.ª e sem tração. O que o levou a tentar a troca de marcha ?no tempo? e, como não dava muito certo, passamos a rodar só em 1.ª e 2.ª, com reduzida permanentemente acionada. Depois da balsa do Igapó fomos informados que poderíamos ter algum recurso ou socorro em Jutai, a 20 km, mas rodamos mais de 50 km e ….nada! Às 20h30min atolamos definitivamente em um mar de lodo. Não tivemos condições nem de sair do jipe. A selva cobria a estrada e a única claridade era a da lua e das estrelas. Mata compacta, não havia som de nada. Caiu um silêncio total que não tínhamos coragem nem de trocar palavras. Isso era de assombrar, por estarmos em plena selva.

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A solução foi ficar sentados no interior do jipe até dormir. Para quebrar o silêncio e esperar uma resposta, Márcio deu dois tiros de pistola para o alto. Ninguém se manifestou. Entregamos-nos ao sono. Próximo do amanhecer, Márcio me acorda preocupado com um possível ataque de onças, porque seus urros estavam próximos. Mais alguns tiros em direção dos urros do ?bicho?, para assustá-los. No amanhecer, macacos gritavam constantemente. Muito pássaros cantavam, formando um orquestra de aves e bichos. Chegava a ser lindo e quando tomamos consciência de onde estávamos e onde passamos a noite, fomos invadidos por um misto de medo e emoção. Já dia claro, analisamos o local e puxamos o guincho até uma árvore, ?numa única tentativa?, segundo Márcio. E o jipe saiu do buraco. Mas isto custou mais problemas mecânicos: no desatolar, o cabo do guincho enrolou na roda e danificou o sistema de freios. Minutos depois surge um caminhão transportando alguns homens. Eram trabalhadores da Alfa Construtora, empreiteira da Embratel, que instala fibra ótica entre Porto Velho e Manaus. Pedimos socorro, fizemos proposta para alugar o caminhão, mas nos aconselharam a ficar na estação Marielson, repetidora da Embratel, logo adiante. Eram 8h12min do dia 22 de fevereiro quando lá chegamos, famintos, exaustos e cobertos de barro. Encostamos o jipe e o velocímetro marcava 38.474 km, isto é, tínhamos rodado 409 quilômetros, deixando para atrás seis grandes atoleiros, quatro balsas e 42 pontes.

O bóton mantém a lenda

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A aventura serviu também para conhecer passagens sobre a vida de políticos do Amazonas. Um deles, tradicional e respeitado, mantém na lapela do paletó um bóton que traz a figura boto tucuxi também conhecido por boto-vermelho, o garanhão do grupo. Quem conheceu o político diz que ele era um grande conquistador das menininhas pobres e inocentes de Manaus. Ele contribuiu muito para a popularidade dos botos. As mocinhas começaram a aparecer grávidas em casa e os pais cobravam a paternidade. Queriam saber quem era o pai. Elas corriam ao político para dar uma satisfação em casa. ?Ah! Diz que é do boto… do boto…? E ele passava ileso. Acreditam os índios do Amazonas que o boto é encantado e, transformando-se em moço, seduz as jovens. É considerado, pois, pai de todos os filhos cujo progenitor não se conhece. O boto seria um cetáceo (mamífero aquático) delfinídeo (focinho alongado e guarnecido por fortes dentes).

Cada buraco, uma história

O barro não deixava
o nosso jipe andar.

A BR-319 Manaus – Porto Velho é conhecida pelos seus buracos, fundos e longos. Chegam a alcançar quilômetros, e são nada mais nada menos que a estrada transformada em extensos atoladores na temporada das chuvas, como ocorria no final de fevereiro. Quando saímos de Castanho fomos advertidos para observar bem onde iríamos pôr os pés ao andar pelo barro. A água calma e barreta poderia estar escondendo um buraco grande e fundo, conhecidos por ?chupadores?, onde muitos carros já tinham sido tragados. Não deu outra, no primeiro atolador, ao sair do jipe, fiquei com uma perna só. A direita foi chupada por uma cova.

Quando consegui arrancá-la, a sandália, muito bem amarrada, ficou enterrada. O barro prende e não solta (é o tabatinga). Quando se pedia informação sobre a rodovia, todos avisavam: ?dá para ir, mas não sei se vocês passam no ?Buraco das Galinhas?. Mas tem também o ?Buraco dos Catarinas?, que é o pior?, advertiam. Só uma pessoa afirmou categoricamente: ?vocês não chegam a Humaitá?. Não demos atenção, porque acreditávamos em nossas possibilidades de sucesso.

Cada atolador, cada buraco tem sua história. ?Buraco das Galinhas? passou a ser assim conhecido porque, no local, tombou um caminhão carregado de galinhas. As aves que puderam se salvar penetraram na selva e se tornaram galinhas selvagens.

No tempo áureo da estrada, catarinenses do vale do Itajaí adquiriram uma fazenda próxima de Humaitá. Só que hoje, na frente da propriedade deles, começa um atoleiro de quase 30 quilômetros. Por isso, passou a ser chamado de ?Buraco dos Catarinas?. Há na área tratores para arrastar os carros. Há também o ?Buraco Itamarati?, em razão da fazenda com o mesmo nome. Agora, mais um foi acrescido: o km 240 passou a ser conhecido por ?Buraco do Delegado?. Lá passamos um dia atolados e o delegado Márcio empenhou-se muito para sairmos do buraco.

Além do barro, muitos
bueiros rompidos.

Mata, luz e estrelas

Se não fosse os urros das onças e os gritos dos macacos, passar uma noite em plena selva amazônica até teria sido uma experiência agradável. A mata cobria praticamente a estrada, e por entre os galhos e folhas via-se uma bela lua e um céu muito azul e estrelado.

Sentia-se algo de medo e emoção, de amor, poesia e remance. Choveu bastante na tarde anterior e durante a noite, mas a madrugada era linda, apesar de termos na frente uma estrada que parecia muito com um mar de lama. Em pleno atolador, dois homens no interior de um jipe, insignificantes diante da imensidão da selva e da dificuldade de locomoção.

A aventura que empreendemos não é nada recomendável para quem não estiver preparado. Concluímos que vivemos o problema pela falta de simples cabo de embreagem de reserva. O mundo dos jipeiros não recomenda que se viaje com falta de equipamentos e peças de reserva e um carro de apoio.

O nosso azar era tão grande que se o possante caminhão da empreiteira tivesse chegado cinco minutos antes e nos rebocado, teríamos evitado estourar o burrinho do freio pelo cabo do nosso reboque. Como estávamos sem embreagem, sem freio e com problemas no óleo, a solução foi encostar o veículo na estação e estudar uma saída.

Botos e a misteriosa Zélia

Rudinei da Silva e
a dança com Zélia.

A selva amazônica é rica também em mistérios, história, causos e lendas. A comunidade de São Sebastião do Igapó-Açu promove todos os anos, em outubro, a tradicional Festa do Tucunaré, já incluída no calendário turístico nacional. O rio Igapó é conhecido internacionalmente pelos três botos que habitam suas águas e ficam bem próximos da balsa que faz o transporte. Os botos levam nomes de personalidades que fizeram história em seus períodos. O mais estimado é o Beto, em homenagem ao jogador de futebol Bebeto. Ele nasceu quando bebeto estava no auge de seu futebol. O Boto Beto tem 13 anos e 3 meses. A ex-ministra Zélia Cardoso de Mello deu nome a boto Zélia que nasceu quando Zélia administrava nossas economias no governo Collor. A boto Zélia tem 11 anos e é mãe do Boto Igapó-Açu, com 3 anos, cujo o nome é em homenagem a comunidade de 53 famílias com 300 habitantes.

Mas o grande mistério está na história que contam. No baile da festa do Tucunaré, à meia-noite, aparece no salão uma mulher muito bonita, toda vestida de branco e dança com todos os presentes até o baile terminar. Depois ela desaparece como chegou; sem ninguém perceber. Os irmãos Sidney da Silva, 30 anos, e Rudinei da Silva, 27 anos, que já teriam dançado com a bela e misteriosa bailarina, garantem que a moça é a boto Zélia que se transforma e no final da festa volta às águas.

Adilton Barreto, 50 anos, residindo há 18 anos em Igapó-Açu, é o adestrador dos botos. Quando perguntado sobre a boto Zélia ele se cala. Prefere falar sobre sua arte de domador dos botos. Diz que eles já deram show para televisões brasileiras e do exterior num vendeiro malabarismo que encanta a todos.

Adiantam que os botos atraem turistas do Brasil e de fora, e para manter os animais pede-se uma contribuição espontânea em dinheiro, que é para a alimentação dos botos e recursos para a comunidade que é muito pobre. Adiantou que o nascimento de botos ocorre sempre de 9 em 9 meses e o próximo nascimento será dia 13 ou 15 de novembro e só nesse mês acontece. O nome boto que está para nascer ainda não foi escolhido, mas sabe-se que é filho da Zélia.