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Autor revela limites da dignidade humana em ‘O Rei de Havana’

Escrito em 1998, o livro O Rei de Havana ainda transborda crueza e sensualidade. Obra que marcou a estreia do escritor cubano Juan Pedro Gutiérrez, a narrativa chamou atenção para uma prosa sem artifícios e também nada impiedosa – ao mesmo tempo em que retrata a pobreza e a decadência de Cuba, abre caminho para os marginalizados se expressarem. E isso acontece por meio da união de contradições, em que o sofrimento diário e a luta para vencer a fome convive com um sexo abundante, lascivo, sem culpas. O livro ganha nova edição, pela Alfaguara.

A trama acompanha a trajetória de Reinaldo, jovem que se torna subitamente órfão de forma trágica – em um mesmo dia, a mãe é assassinada involuntariamente pelo irmão mais velho que, depois disso, comete suicídio. Ao testemunhar a sucessão de infortúnios, a avó acaba morrendo do coração. Isso tudo acontece em poucos minutos.

Sozinho, Reinaldo é obrigado a viver minuto a minuto. Depois de uma temporada em um reformatório, ele foge e, adolescente ainda, passa a viver de si mesmo. “Como ele, há centenas ou milhares em Cuba – jovens meio pirados, com um carma terrível marcado pela testosterona e a loucura e com excesso de energia”, conta Gutiérrez, em entrevista realizada por e-mail.

De fato, em meio à decadência completa da cidade – Reinaldo perambula principalmente pelo lado obscuro do Malecón, bairro turístico de Havana, cuja área deteriorada é formada por cortiços e lixo a céu aberto. É nesse espaço abandonado que Reinaldo ostenta uma enorme vontade de viver – e também de um insaciável desejo de fazer sexo, favorecido pelo pênis vantajoso, o que alimenta ainda mais o desejo luxuriante das mulheres que encontra. Para aumentar ainda mais seu sex appeal, ele enxerta duas pérolas no membro, o que o torna mais desejável.

Gutiérrez descreve com incrível exatidão os ambientes pútridos, o desmazelo de seus personagens, que ficam dias sem tomar banho, criando crostas de sujeira. Mas pessoas que seriam nada atraentes ganham um charme particular a partir da narrativa do escritor, que os transforma em sobreviventes dos infortúnios da vida. Até mesmo a descrição de um ato sexual marcado por suores e marcas de pestilência ganha contornos eróticos. Por conta disso, Gutiérrez enfrentou resistência do governo castrista, que dificultou a circulação de sua obra – ele ainda é autor da Trilogia Suja de Havana. E são as palavras que o salvam, em uma literatura forte, sensual, carregada de odores e paixões.

Como você vê hoje O Rei de Havana? Sente um pouco de nostalgia?

Nostalgia, não: o romance continua me dando medo e angústia, porque personagens assim seguem vagando em Havana, São Paulo, Cidade do México, etc. Eu sofri muito escrevendo esse livro.

As mulheres em seus romances são fortes, decididas, fogosas. Elas sempre foram importantes em sua literatura? Por quê?

Porque as mulheres são maravilhosas, a melhor coisa da Criação, o Ying que equilibra e aperfeiçoa o Yang. Acredito que cubanas e brasileiras sejam muito parecidas.

Reinaldo é um personagem notável, forte, e com duas pérolas enxertadas no pênis. Esse cara existe?

Sim, sem dúvida. Como ele, há centenas ou milhares em Cuba – jovens meio pirados, com um carma terrível marcado pela testosterona e a loucura e com excesso de energia. Vejo-os sempre nas ruas.

Você comentou que a travesti Sandra é um personagem que fugiu de seu controle – deveria ter um pequeno espaço no romance, mas acabou aparecendo em dois capítulos. Como foi isso?

Não tenho ideia de como isso acontece, mas acontece. Um personagem ganha força e foge do controle, começa a ter protagonismo e é preciso fazer alguma coisa para contê-lo. Quando o texto funciona, isso sempre ocorre. Se todos os personagens são mantidos sob controle é porque algo não está fluindo bem.

Pode-se dizer que o sexo desenfreado é uma saída emocional para os cubanos?

Hummm…, não sei. Só posso dizer que os cubanos jovens – de até uns 60 anos ou mais – são desenfreados em sexo e em tudo o mais, às vezes impulsivos em excesso.

Em seus livros você mostra uma Cuba muito diferente do ideal revolucionário. Esse ideal fracassou?

No momento há um projeto revolucionário muito mais comedido, menos ambicioso, que trata de salvar o melhor daquele projeto grande demais, e isso é bom. Vejo com bons olhos.

Por que você insiste em mostrar o que Cuba esconde debaixo do tapete?

É esse o trabalho do escritor: dizer o que a imprensa e os livros de história não dizem, penetrar profundamente na época e no tempo que nos coube. A literatura é a memória de um povo. Pobres dos povos que não têm escritores, ou os censuram e maltratam porque se autodestroem. Um povo sem a memória da literatura é pobre e carente.

O que se pode dizer da Cuba atual? Existe a possibilidade de grandes mudanças?

Seguramente. Agora mesmo estão ocorrendo mudanças interessantes, e haverá mais e mais. O processo já se tornou irreversível.

O REI DE HAVANA

Autor: Pedro Juan Gutiérrez

Tradução: José Rubens Siqueira

Editora: Alfaguara (184 págs., R$ 39,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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