Marat Descartes viveu um fim de semana de sonho – e emoções. Mais que o troféu Barroco, que recebeu como homenagem da Mostra de Tiradentes por sua expressiva trajetória – um ator jovem que já deixou sua marca impressa no teatro, no cinema e na TV -, ele se emocionou porque a homenagem foi compartilhada por amigos e familiares que o acompanharam nestes dias memoráveis. Marat tem cara e pinta de bom moço. É mais fácil aceitá-lo como o perturbado personagem de Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra, do que como o cafajeste de Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa, de Gustavo Galvão, exibido sábado, 25, à noite, integrando a homenagem ao ator. O filme, que o diretor já vinha gestando há 20 anos, de alguma forma ficou datado. Dois caras na estrada, e um é o personagem de Marat. Numa prova de que é bom de fato, Marat convence plenamente como cafa, mais até como o Júnior, o adulto que não amadureceu de Quando Eu Era Jovem. Sua caracterização – aquela peruca que o deixa com cara de ‘debi & lóide’ – é muito pesada no filme, de resto vem interessante, de Marco Dutra.
A nova cara do cafajeste brasileiro também é Marat Descartes, quem diria. E já que a Mostra o celebrou também como ator de teatro, vale divulgar a novidade – com o diretor Rafael Gomes, Marat estreia no segundo semestre uma nova montagem de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams. Vai fazer Kowalski, Maria Luisa Mendonça será Blanche DuBois. De volta ao cinema, a Mostra de Tiradentes exibiu alguns filmes bem interessantes no fim de semana. O melhor de todos foi A Gente, de Aly Muritiba, sobre dublê de agente penitenciário e pastor religioso num presídio no Paraná. O personagem é muito forte em sua relação com fiéis e detentos. O filme não se restringe a ele, como um mecanismo expositivo. Discute a própria linguagem, construindo-se nas bordas do documentário e da ficção.
Nesta segunda-feira, 27, começa a Mostra Aurora. É a menina dos olhos de Tiradentes. A grande vitrine do cinema autoral, experimental brasileiro contemporâneo. O que tem estado em discussão, aqui, são os outros modos de criação dos projetos audiovisuais. O espectador que vai ao cinema talvez não se interesse em saber como o filme foi feito. O que conta, para ele (a maioria?), é o resultado. Mas em Tiradentes conta muito o processo. Como os filmes são feitos. Existem filmes que simplesmente não existem sem a exposição do mecanismo com que foram criados. Um dos melhores filmes ‘processuais’ recentes talvez seja – é – Amador, de Cristiano Burlan, diretor do excepcional Mataram Meu Irmão.
O filme trata da busca de um diretor, o próprio Cristiano, por um rosto de mulher. Ele faz testes com atrizes. Expõe-se. Ao crítico Jean-Claude Bernardet, conta que perdeu a mulher e produtora. Se ficassem juntos, talvez se matassem. Mas, para superar a dor, ele busca agora fazer um filme. Ama-dor, o movimento contraditório. E, ao mesmo, uma definição de cineasta. O artista como experimentador, não profissional. Numa cena belíssima, Burlan pergunta a Jean-Claude o que é o cinema. O crítico diz – “é Preciso responder? Não podemos ficar só aqui, em silêncio?”
Talvez o plano devesse ter ficado um pouco mais na tela. Esse silêncio que vale por mil palavras. O que é o cinema? Pode ser que, como sugere Jean-Claude, sob o olhar de Cristiano Burlan, seja uma pergunta sem respostas. E por quê? Porque o cinema não é um nem único. É múltiplo. Cada um terá sua definição, ou sua escolha. E quem, pode garantir qual é a certa? O filme prossegue. O diretor expõe-se (como ator e personagem). As pessoas desaparecem. A câmera segue filmando, como no desfecho de O Eclipse, de Michelangelo Antonioni. Puccini, E Lucevan le Stelle, ária da Tosca, de fundo. O preto e branco é admirável. Amador poderia estar na Mostra Aurora.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.