Antes de tudo, Dante Romanó Júnior (l929-2004) tinha estatura. Sua vida foi uma crescente inquietação. Sempre exigiu mais, sobretudo de si mesmo, construindo-se como um homem ético. De família conservadora, aluno do tradicional Colégio Santa Maria, membro da Juventude Universitária Católica, formou-se em medicina e trabalhou como professor na Universidade Federal do Paraná. Aí, no Hospital de Clínicas, o contato diário com o sofrimento e a miséria (devido sobretudo às condições de vida da maioria dos pacientes e às reiteradas restrições impostas à saúde pública) amplia sua consciência social. O golpe de 1964 e a repressão política que se segue, atingindo também amigos e alunos, radicalizavam ainda mais seu espírito. Num período e contexto local muito mais de anátema que de diálogo, seu humanismo cristão assume valores dos ideários republicano e socialista, implicando – senão a escolha de um novo caminho -a corajosa postura de resistência. Nos anos mais sombrios da ditadura militar Dante emprestou solidariedade, deu abrigo e ajudou na fuga de perseguidos políticos.
A sua candidatura à Reitoria da Universidade Federal do Paraná em 1985 foi conseqüência do seu engajamento na organização do movimento docente (no início do primeiro semestre de l977, apesar do medo e isolamento impostos à Universidade, alguns colegas, entre camaradas e futuros companheiros, passavam a discutir como organizar os professores tendo por objetivo uma oposição democrática. Dante estava entre eles e dois anos depois participava da chapa Universidade Necessária que disputaria, em memorável embate eleitoral, o comando da Associação dos Professores) e representou um dos momentos de maior ousadia de sua presença cívica. O seu compromisso com a universidade pública e democrática pode ser colhido em suas próprias palavras:
“No cartaz de minha campanha, quando retirei duas das colunas do prédio histórico, não foi somente para escancarar as portas de entrada da Universidade, mesmo porque por tais portas entrariam preferentemente os filhos da burguesia. Tenho consciência de que é necessário proceder de forma a que os jovens das camadas populares se encontrem em circunstâncias iguais aos da camada privilegiada, eliminando-se as barreiras sociais e econômicas que impedem seu acesso à Universidade. É função do Estado garantir esse objetivo, assumindo os custos sociais necessários para anular as discriminações de ordem sócio-econômica na realização do curso universitário.”
Dante (bem como os estudantes que em grande número o apoiaram) tinha, assim, a esperança de que o testemunho dos filhos das camadas populares poderia contribuir para mudar o perfil da universidade pública: com as perspectivas e exigências de classe, sem prejuízo da autonomia universitária, influenciariam em seus rumos e pesquisas, tornando a universidade essencial, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento do país e para a consolidação da democracia.
Seu compromisso social e sua generosidade manifestam-se igualmente no exercício da medicina e na sua intransigente defesa do Sistema Único de Saúde. Para Dante, a saúde não se ordena pelas regras do mercado. A evidência de que a saúde está condicionada pela dimensão do social, de que os mais altos indicadores de saúde foram conquistados pelas sociedades de maior eqüidade (“melhor saúde individual onde há melhor bem-estar coletivo”, era uma de suas premissas) o levou a participar ativamente das discussões que criaram o programa Saúde na Família em Curitiba. Os canadenses que aqui vieram para ajudar na instituição do Médico de Família foram convencidos de que o programa deveria ser ampliado para Saúde na Família: Dante, com a grandeza da simplicidade, lhes disse que o médico, apesar de sua evidente importância, não deveria ser senão ator coadjuvante.
Sua vida foi igualmente permeada por uma constante curiosidade intelectual que se manifestava em traduções de escritos de medicina social (Karl Rudolf Virchow, leitor do jovem Engels, “para demonstrar as relações entre pobreza e doença”), em releituras de Guimarães Rosa (médico educador, “nosso aprendiz do real na travessia”), de Graciliano Ramos (mestre do romance social “e da passagem pela escola pública como obrigatória à cidadania”), em incursões freqüentes pelos clássicos da literatura inglesa ( muito apreciava Oscar Wilde, “um blagueur insuperável”) e, mais recentemente, pelos autores militantes do Fórum Social Mundial de Porto Alegre (Noam Chomsky era o preferido). Dante estimulou projetos de caráter sócio-ambiental ( em Guaraqueçaba, que tanto gostava de visitar), se interessava por botânica
(preocupava-se com a preservação da mata atlântica e conhecia bem as bromeliáceas e algumas de suas espécies). Talvez devido sua experiência de bolsista em angiologia na Argentina (Rosário) e na Suécia (Estocolmo), não se cansava de propor uma adequada recepção aos estudantes estrangeiros em nossa cidade – sabia bem o significado da hospitalidade e do cosmopolitismo. Até pouco tempo antes da doença que o abateu, não descuidava de seus hábitos físicos, adquiridos desde os tempos de estudante, quando obteve marcas nacionais na corrida com bastão, destacando-se em competições universitárias de percursos longos. Dante culturalmente era um garimpeiro, descobria preciosidades, esboçava pistas de trabalho.
Desde séculos (desde os tempos homéricos mas certamente desde o discurso de Péricles ao final da primeira etapa da Guerra do Peloponeso, em homenagem aos soldados que tombaram) não é fácil fazer e concluir um elogio fúnebre. Se confessamos que a vida de todos nós ficou mais pobre, temente e desprovida, então – fiéis aos nossos sentimentos para com um dos últimos representantes de uma geração de amigos, de intelectuais públicos companheiros de travessia, que marcou a Universidade Federal do Paraná por sua coragem cívica – ocorreu-nos lembrar os versos de despedida do grande poeta russo Sierguéi Iessiênin (tradução Augusto de Campos) que, de certa forma, também expressam as derradeiras reflexões existenciais do nosso bravo professor:
“Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.”
Até logo, amigo e professor Dante. E não se esqueça de dar o nosso abraço, – de todos nós que tivemos o privilégio de conhecê-los -, ao Lamartine, ao Chiquinho, ao Amilcar Gigante, ao Paulo Barbosa, ao Newton Freire-Maia e ao Riad Salamuni. Estenda-o ao Adhail Sprenger Passos, ao Ruy Wachowicz, ao Mário Araújo e ao Herley Mehl. E que do reencontro de todos vocês saia outra bela conspiração!