Ataque a Woody Allen não invalida sua obra

Por sua complexidade, o caso Woody Allen merece ser analisado com toda a delicadeza, sem ideias preconcebidas. Sei que é difícil pedir serenidade num tempo em que as redes sociais, em particular, se ocupam de linchamentos e conclusões instantâneas, mesmo em assuntos controversos e com vários ângulos a serem vistos. No caso, há pelo menos dois, a palavra de Woody Allen e as de Mia Farrow e agora de Dylan, sobre o alegado abuso.

É bom lembrar que somente agora, aos 28 anos, Dylan se lembrou de acusar o cineasta do abuso que teria acontecido em 1992, quando ela tinha sete. Vale também lembrar que Allen nunca foi processado e médicos que examinaram a menina não conseguiram dela depoimentos que incriminassem o padrasto. É um caso duvidoso, no qual as verdades factuais se perdem em incertezas, versões e impressões. Difícil decidir o que realmente pode ter acontecido.

Para nós, que estamos de fora, fica uma impressão de que tudo tem origem na tumultuada separação de Woody Allen e Mia Farrow, que parece ter causado um ressentimento incurável na atriz. Ora, ela tem todo o direito de odiar Allen por tê-la abandonado pela enteada dela, Soon-Yi, com quem o diretor vive até hoje.

Por que outro motivo Mia Farrow teria declarado que possivelmente um dos seus filhos naturais com Woody, Ronan Farrow, hoje com 25 anos, teria por pai, na verdade… Frank Sinatra? Não seria o desejo de ferir o antigo companheiro levado até um limite inimaginável? Se há alguma dúvida de que Shakespeare tinha razão ao dizer que o universo não conhece fúria maior do que o de uma mulher ferida, Mia se encarrega de demonstrar a frase do Bardo. Teria Mia arrastado os filhos nesse ódio, ou todo esse rancor seria justificado por atos do cineasta? Difícil decidir de forma definitiva.

Dylan tem dito que não pretende reabrir o processo contra Allen. Apenas deseja que seus filmes não sejam vistos, como se o sucesso do ex-padrasto a ofendesse. E quisesse vingar-se do homem comprometendo a obra. A tese de fundo é que existiria uma continuidade direta entre o artista e sua obra. Se o artista é culpado de alguma falta, sua obra deve ser esquecida, ou colocada numa espécie de índex moral.

Tal argumento, supondo-se que Allen seja “culpado”, não se sustenta na história da arte e das ideias. François Villon era ladrão e poeta. Jean Genet passou a juventude em reformatórios e prisões. Martin Heidegger serviu ao nazismo e nem por isso o autor de Ser e Tempo deixa de ser considerado um dos filósofos mais importantes do século 20. Louis Ferdinand Céline era pró-nazista, escreveu panfletos odiosos contra os judeus e chegou a ser condenado à morte, à revelia, pela Resistência Francesa. Certo, e, no entanto, escreveu um romance como Viagem ao Fim da Noite (Voyage au Bout de la Nuit), considerado, por Sartre, divisor de águas na literatura francesa. Isso sem falar num compositor tão fundamental como Richard Wagner, ou num regente como Wilhelm Furtwängler, que aparece em vistosas fotos ao lado de Hitler. Enfim, se a conduta desses personagens revelou-se deplorável, suas obras subsistem e, em grande parte, porque atingem um grau de beleza que contradiz as posições equivocadas assumidas por eles mesmos.

São exemplos extremos, que causam perplexidade em quem preferiria que a natureza humana fosse mais nítida, isenta de ambiguidades e sentimentos contraditórios.

Além do mais, desde Sigmund Freud aconselha-se cautela sobre esses casos de suposta sedução. Convém lembrar que durante os anos iniciais de sua prática, Freud ouvia frequentemente de suas pacientes o relato de seduções, em geral por parte do pai. Eram tão frequentes que Freud temeu que a população de Viena fosse composta inteiramente de pais pervertidos. Até mesmo seu velho pai poderia ser incriminado. Ao aprofundar sua pesquisa, Freud começou a perceber que estes casos tinham acontecido, no mais das vezes, na fantasia das pessoas e não na realidade. As supostas seduções fariam parte do desejo inconsciente das pacientes e não da realidade factual. Os pais, coitados, não tinham cul,pa nenhuma.

Claro, ninguém precisa ser psicanalista ou acreditar em Freud para inocentar Allen – que aliás, se analisa continuamente, desde a juventude. Apenas recomenda-se um pouco de cautela antes de formular um julgamento definitivo sobre esse emaranhado de paixões frustradas, ódios e ressentimentos. Complexo de sentimentos, aliás, que seria excelente material para o filme que Woody Allen não fará. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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