É incrível como muitas vezes a história literária nos faz ver os fatos literários separadamente e não no seu conjunto, a exemplo da diversidade de Escolas. Para perceber este aspecto foi necessário ler um livro chamado Boca do Inferno, da autoria de Ana Miranda. E o motivo é simples, através do referido romance-histórico, foi possível visualizar Gregório de Matos e padre Antônio Vieira juntos. São contemporâneos obviamente, autores ancorados no Barroco, mas os estudos acadêmicos tradicionais não permitiam visualizá-los em uma mesma época, pisando o mesmo chão.
O livro de Ana Miranda, cujo título refere-se ao suposto pseudônimo do poeta Gregório de Matos, faz o recorte de um momento histórico brasileiro situado no século XVII. A autora reconstrói uma Bahia distante no tempo. Cuida dos detalhes de suas ruas estreitas, de seu casario, do seu porto, da sujeira e do lixo. Como protagonistas escolheu Gregório de Matos e padre Antônio Vieira, os quais, juntamente com a família dos Ravasco, participaram de uma conspiração para destituição do então governador, Antônio de Souza Menezes, o Braço de Prata. São, portanto, personagens bem escolhidos, algo assim que apenas poderia ser saboreado em um romance. Vieira e Gregório, evidentemente são peças imprescindíveis na literatura brasileira seiscentista.
Utilizando-se dessas figuras, a autora consegue esboçar um painel interessantíssimo do Brasil colônia. Um painel, diga-se de passagem, que não difere em nada do Brasil do século XXI. É possível que os sermões de Vieira e as sátiras de Gregório sejam aplicáveis aos políticos corruptos e ao poder público esclerosado de nossos tempos. Mas, talvez a temática do romance, seja apenas uma mera coincidência.
Ana Miranda pinçou Gregório de Matos, Doutor pela Universidade de Coimbra, poeta satírico, que verte fel pelos seus poros e poemas e que não tinha o menor escrúpulo em jogar “um tanto” de pimenta malagueta nos olhos de seus desafetos. De outro lado, juntou um padre português, Vieira, deu-lhe a naturalidade brasileira, em seu estilo conservador em relação ao Boca, mas contundente como tal e uniu-os de acordo com aquilo que lhes era comum: o poder da palavra. Vieira e Gregório eram oradores perfeitos e reconhecidos. A autora mostra aquele Gregório que todos os estudantes de literatura imaginam e isso é fatalmente delicioso, ou seja, uma figura de elevado sentimentalismo aventureiro, sensualidade a flor da pele, dono de uma vasta galeria feminina e, acima de tudo, um debochado. Mas como ser humano e poeta sensível, demonstra fragilidade em seus momentos de solidão e embriaguez. Quanto ao padre Vieira, tinha desejo de ação contínua. Movimenta-se para todas as direções e seu personagem é marcadamente rabugento. No entanto, torna-se sereno ao atender aos necessitados e defender os índios. Ser velho e doente para ele não eram obstáculos, pois estava lúcido e as palavras frutificavam de uma fonte inesgotável.
Este é o primeiro impacto da obra.
Embora fundamental, o envolvimento dessas personagens no evento histórico se faz de maneira periférica. A autora estruturou o romance de tal forma que Vieira e Gregório foram enlaçados na trama naturalmente. Os Ravasco e seus aliados precisam deles para o trabalho da defesa, após o assassinato do alcaide-mor Teles de Menezes. A partir daí, seguem-se mortes, prisões e traições. O Braço de Prata utiliza-se de todo o seu poder para pegar os culpados e entre eles espera vingar-se de Vieira, o qual odiava e de Gregório, que obviamente não perdia seu tempo fazendo sátiras em “homenagem” ao Governador. Após a prisão de Bernardo Ravasco, Gregório refugia-se no Recôncavo, próximo aos engenhos e ali passa dias dentro de uma cabana miserável. O poeta doutor está abandonado. Por sua vez, Vieira movimenta-se e tenta interceder, mas já não tem apoio da Coroa. O padre, que tinha a fama de advogar as causas dos cristãos novos, suscitara o ódio do Santo Ofício. Neste momento, observa-se que o perfil de Vieira é bem lapidado tendo em vista sua dedicação a esta terra através de indícios deixados em suas Cartas e Sermões.
Desta forma, a história mescla-se à ficção. Vieira e Gregório vão tecendo a trama numa espécie de tear especial, casando os fatos, contornando-os, relatando-os de acordo com a visão de mundo de cada um e, finalmente, denunciando-os ao Brasil da época e ao de hoje.
Imperdível, portanto, a leitura de Boca do Inferno, um romance vigoroso, que além de chamar a atenção em seu título ao poeta Gregório de Matos, assinala também para a categoria para a qual o novo mundo fora submetido que é a de ser permanentemente, em todos os aspectos, aos olhos europeus, o espaço da perdição e do pecado. Ou seja, a boca ou a porta de entrada do inferno, propriamente dito.
Obra: Boca de Inferno
Autora: Ana Miranda
Ed. Companhia das Letras.
Maria Helena de Moura Arias é jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual de Londrina.