Olivia Hime procurava o oposto do susto, da surpresa. Enquanto muitas cantoras trabalham com a quebra da linearidade driblando expectativas e invertendo climas na faixa seguinte, ela queria que tudo estivesse no aconchego dos mesmos braços. Um trabalho de talento descomunal para juntar canções com arranjos camerísticos ou até mais cheios, agrupando músicas em formato de suíte. Ela sabia o que queria, o que não sabia era como tudo se acomodaria ali, um compositor após o outro, com tudo o que lhes aproxima e distancia.
As suítes de Olivia saíram assim, da reunião da obra de três compositores dos que mais a tocaram nesses anos. Dori Caymmi, o marido Francis Hime e Edu Lobo. Espelho de Maria, o disco que sai nos 18 anos de sua gravadora Biscoito Fino, traz cordas e madeiras deslizando pelas poesias dos três amigos integrantes da chamada segunda geração da bossa nova. “Pensei em fazer assim desta vez”, ela diz. “Um roteiro de emoção musical sem ruptura.”
A Suíte Dori, com o subtítulo de As Canções Sem Fim, faz uma abertura instrumental sendo a primeira delas Rio Amazonas, desafio eterno mesmo para grandes cantoras. E seguem O Mar É Meu Chão, Saveiros, Canção Sem Fim e O Cantador. Os temas serão retomados, alongados e vão sugerir novos caminhos sempre com os arranjos pensados pelo próprio compositor. “Primeiro eu pensei na música em si, na minha certeza da permanência da canção brasileira”, diz Olivia.
Seria a habilidade de criar arranjos uma das características da chamada segunda geração dos bossa-novistas? Francis, Dori e Edu têm experiência nesse pensamento. Olivia vai com mais calma, dizendo que a primeira turma, de Johnny Alf (esse até antes, na pré-história da bossa), Tom Jobim, Baden e até a intermediação das gerações feita por Luizinho Eça, já havia entregado tudo para que “os meninos” se esbaldassem. “A primeira geração desvenda os caminhos harmônicos, melódicos e rítmicos. Foi a geração que deu o alerta”.
Dori tem sua suíte encerrada com Canção Sem Fim, condizente com a inspiração de Olivia ao pensar na força da composição. “Muitos dizem hoje em dia / que a canção vai se acabar / A canção quem faz é o vento / É o pássaro no ar / É o som da cachoeira / É o ritmo do mar.” A voz de Olivia, em outra região, pensa muitas vezes como a de Dori, e emociona também em suas fragilidades.
A suíte Edu começa com outra abertura instrumental e uma frase de Olivia, que a liga com todo o Dori que veio antes: “São bonitas, são bonitas as canções”. Edu vai por outros caminhos daqueles escolhidos por Dori. Aqui entra um chão de terra que desde Arrastão, de 1965, parece tecer sua própria lógica poética e rítmica. “Qual é o ritmo dessa canção?” é pergunta recorrente a quem procura enquadrá-lo.
Memórias de Marta Saré, Sobre Todas as Coisas, Ave Maria, Canto Triste e Canção do Amanhecer. Edu faz Olivia sair das águas doces de Dori e mergulhar em correntes mais tormentosas, de tons menores e uma certa tensão. Canção do Amanhecer, com a participação de Francis Hime, termina nos versos de Vinicius de Moraes. “Ah, não existe paz / Quando o adeus existe / E é tão triste / O nosso amor.” O clima é outro. “Fui um dia à casa de Tom Jobim”, lembra Olivia. “Ele estava encantado dizendo que havia acabado de chegar da casa de Edu Lobo depois de ouvi-lo tocando Choro Bandido.”
Francis Hime chega então com a suíte Canções Apaixonadas. Olivia canta Atrás da Porta, O Amor Perdido, Canção Apaixonada. “Eu costumo dizer que me apaixonei primeiro pelo músico, e depois pelo homem”, ela ri. “Ele não tem barreiras, é capaz de surpreender o tempo todo.” Casada com Francis desde 1969, Olivia fala como alguém que ainda não se acostumou com o talento do marido.
Olívai Hime
‘Espelho de Maria’
Biscoito Fino, R$ 35,90
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.