As Duas Faces de Janeiro remete a O Sol por Testemunha

Patricia Highsmith pertence à linhagem do romance policial. Criadora do escroque Ripley, ela adora personagens ambivalentes que se apossam das vidas de outras pessoas. Ripley fez isso com seu parceiro de farras Philip Greenleaf em O Sol por Testemunha, grande filme de René Clement em que Alain Delon teve uma das atuações emblemáticas de sua extraordinária carreira. O clássico de 1960 teve direito a gala no Festival de Cannes, em maio. Passou numa versão restaurada, aplaudido de pé até por Serge Toubiana, ex-Cahiers du Cinéma, revista que nunca teve muito apreço pelo diretor. Houve um remake de Anthony Minghella com Matt Damon. Chamou-se O Talentoso Ripley.

Embora Ripley não seja personagem de As Duas Faces de Janeiro, muita coisa no filme de Hossein Amini, em cartaz nos cinemas brasileiros, remete a O Sol por Testemunha e O Talentoso Ripley. Afinal, é outra adaptação de Patricia Highsmith. Passa-se sob o sol da Grécia – o de Plein Soleil é na Itália. Existe um estelionatário. E, como sempre em Highsmith, as pessoas vivem querendo se apossar da vida – da identidade – dos outros.

Itália, aqui Grécia. Mais até do que em outros relatos – Oscar Isaac interpreta um guia na Acrópole -, Highsmith faz aqui múltiplas referências à mitologia greco-romana. O próprio título talvez não se refira tanto ao mês quanto a Jano, uma das mais estranhas figuras da mitologia. Como deus das mudanças, Jano não surge na mitologia grega, mas na romana. E possui duas faces. De cara, no livro, Highsmith fala da dualidade essencial de Jano, até como forma de introduzir o leitor na complexa relação de seu trio de personagens.

Rydal, interpretado por Oscar Isaac – o ator de Inside Llewyn Davis, dos irmãos Coen -, é um americano bom de línguas que trabalha como guia. Na Acrópole, ele encontra o casal Chester e Colette, de passagem pela Grécia. Chester, interpretado por Viggo Mortensen no filme, lhe lembra seu pai – com quem ele tinha problemas de relacionamento (e a cujo funeral faltou, o que agora provoca uma crise de consciência). De forma mais cifrada – é dito e reiterado no texto de Highsmith, mas não no filme -, Colette (Kirsten Dunst), a mulher mais jovem de Chester, lembra o primeiro grande amor de Rydal. Cria-se um embate de fundo psicanalítico – Rydall, como Édipo, precisa matar simbolicamente o pai e dormir com a própria mãe (ou sua substituta, a mulher do pai), para atingir a maturidade e a superação. O problema é a dupla face de Jano. Ao incorporar Rydal, depois de cometer um assassinato, Chester talvez esteja querendo, como todo personagem de Patricia Highsmith, se apossar da vida do rapaz. Mas não estará Rydal disposto a fazer o mesmo com Chester? Ligam-se tragicamente, unidos pela morte – duas mortes.

Patricia Highsmith é uma singular autora policial. Mais que no suspense, seus relatos criminais investem na psicologia dos personagens, que ela tenta desvendar com a mesma obstinação com que gostava de camuflar e se esquivar, quando o assunto era ela mesma. Highsmith nunca gostou de esclarecer coisa alguma a seu respeito – só dizia que não gostava das pessoas, daí seu autoisolamento, o que não a impediu de cultivar sua celebridade nem de ter muitos casos amorosos. Como autora, viveu na contramão da tendência moderninha à aceleração. Highsmith acreditava que só começos lentos – nos livros – ajudam o leitor a se situar em relação aos personagens e seu mundo.

É uma regra que Hossein Amini se esforça por seguir. Nascido no Irã, ele se mudou com a família para a Inglaterra aos 11 anos. Teve uma educação cosmopolita. Tornou-se roteirista – de filmes como Paixão Proibida, Asas do Amor e, mais recentemente, Drive, Branca de Neve e o Caçador e 47 Ronins. Sua estreia foi no curta Catch, de 1989, em que ele fez tudo – foi ator, produtor, roteirista e diretor. Somente 25 anos depois – o tempo de uma geração, uma vida -, ele fez o longa adaptado de Patricia Highsmith. É um bom filme, mas se você fizer como o repórter e (re)vir depois O Crítico, A Família Bélier e Livre – o inédito longa de Jean-Marc Vallée que muito provavelmente vai candidatar Reese Whiterspoon para o Oscar -, essa impressão vai se esvair. De bom mesmo, fica o elenco, o embate entre Mortensen e Isaac. Leva a um desfecho que pode parecer arranjado, como um (happy?) end, mas é denso e coerente com a psicologização que atraía Highsmith. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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