O islandês Saemundur Saemundson, 50 anos, desembarca em Curitiba acompanhado da esposa e dos três filhos. Malas gordas, roupas tropicais, cinco sorrisos ambulantes.

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Para celebrar o cinquentenário, uma viagem pela América do Sul – Che Guevara com cartão de crédito e Hilux. Uma peregrinação de classe executiva, de Curitiba a Machu Picchu, passando por Foz do Iguaçu, Buenos Aires e Lima.

O sol queima no céu como quem busca vingança, Apolo em sua mais terrível carruagem. Para os pálidos viajantes, o verão que aterroriza os curitibanos é motivo de deleite. Ao final dessa odisseia sul-americana, exibirão os bronzeados com orgulho.

A caminho da cidade, cercados pelo caos da Avenida das Torres, o primeiro choque: o simbologia do sinal vermelho. Na Islândia: “pare seu veículo”. No Brasil: “liga o ar e fecha a janela que lá vem o pedinte!”

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Com enormes olhos azuis arregalados, o filho mais novo observa a figura quase fantasmagórica batendo na janela. Para quem havia visto um único mendigo em toda a sua vida (uma senhora eloquente e bem-vestida que pede esmolas na estação central de Reykjavík), a viagem ao terceiro mundo já parece estar se transformando num episódio de The Walking Dead.

O choque cultural é forte. A Islândia está na 13ª posição no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e chegou a ocupar a primeira em 2007. O Brasil está na 85ª. Apenas uma hora após a aeronave tocar o solo, a diferença é gritante.

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Visivelmente abalados pelo encontro, Saemundur e a esposa estudam a paisagem com um olhar indecifrável. Como é, me pergunto, ver a pobreza pela primeira vez? Assistiram e se espantaram com “Cidade de Deus”, mas filme algum poderia captar o que veem ali. A sensação de olhar de perto nos olhos vazios da miséria.

Uma BMW nos ultrapassa em alta velocidade (freiando próximo ao radar, conforme manda o jeitinho brasileiro!). O executivo detrás do volante só tem olhos para a silhueta da cidade grande no horizonte, ignorando os barracões e as crianças de rua como se nada houvesse ali.

Os 12 quilômetros da Avenida das Torres bastam para que os espectros da pobreza se tornem apenas elementos da paisagem, detalhes arquitetônicos tais quais os enormes prédios que marcam o início do Centro, fachadas pichadas, cobertas de assinaturas ilegíveis e gritos de guerra.

Os dias passam e Curitiba mostra (aos poucos, é claro, conforme manda o jeitinho curitibano) seu lado “sorriso”. O calçadão que tornou a cidade famosa na década de 70. Os parques e praças, museus e teatros. Os painéis de Poty Lazzarotto e a poesia de Paulo Leminski.

De vez em quando, um vislumbre de sua outra face. A prostituta desmaiada às 10 horas da manhã em pleno Passeio Público, garrafa de cachaça na mão, seios quase transbordando por cima do top de oncinha.

As imensas obras inacabadas (inacabáveis, para os pessimistas), abismos devoradores de dinheiro público. As viaturas policiais que mais parecem tanques, negras como a morte. – Parecem estar de luto – Saemundur comenta, contemplando uma dupla de policiais trajando puro preto.

De luto estamos nós, tenho vontade de dizer, mas não digo nada. Em 2013, a polícia islandesa matou um homem pela primeira vez em sua história. Como poderia compreender?

Com os obrigatórios pontos turísticos visitados e doze tipos de caipirinhas provados (e aprovados!), o destino agora é Foz do Iguaçu. Sob a luz de um sol escaldante, as Cataratas cantam suas glórias, um coro ensurdecedor de mais de mil m³ de água por segundo. É uma ode não somente ao Brasil, mas à toda a América do Sul. Diante de tamanho poderio aquático, os cinco viajantes permanecem em silêncio.

– É lindo – diz Saemundur enfim. Cala-se logo a seguir, pois não há nada mais a acrescentar. Naquela noite, às vésperas da nossa despedida, Saemundur e a família relatam o que deduziram sobre o Brasil.

Apesar dos pesares (e são tan,tos os pesares!), o Brasil é um belíssimo país. Uma nação de gente que sabe o valor do trabalho e da batalha, mas que também conhece a alegria de uma boa festa. A pátria de Niemeyer e Pelé, de Zumbi dos Palmares e Machado de Assis. Uma terra onde a própria terra vive e onde todos querem, acima de tudo, viver.

Mas, ao contrário do que nos garante o governo,  não é “um país de todos”.
E isso até mesmo um grupo de nórdicos com os bolsos forrados de gadgets Apple e Mastercards, após meros cinco dias no país, é capaz de perceber.