Ary Fontoura não se acha bem-humorado

O humor que transpira dos personagens que marcam seus 55 anos de carreira criam uma ilusão de ótica. Ary Fontoura é um homem cético. ?Meu humor vem da genética. Meu pai é um homem profundamente introvertido, mas irônico?, conta. A política, para ele, está tomada por mafiosos. E viver bem mesmo é viver só, segundo conta nesta entrevista que você lê a seguir.

O senhor é mesmo bem mais sério do que seus personagens ou são as pessoas que sempre esperam uma piada quando falam com o senhor?

Ary Fontoura – Olha, se o meu humor fosse igual ao do Ary Toledo, que começa a contar uma piada e todo mundo precisa do desfecho para rir, aí sim eu seria abordado dessa maneira. Meu humor vem da genética. Meu pai é um homem profundamente introvertido, mas irônico. Eu lido muito com a tragédia em primeiro lugar, todo ponto engraçado é trágico. Uma pessoa escorrega em uma casca de banana, se estribucha no chão, é impossível deixar de rir. Mas quando ela tenta se levantar, alguma parte do seu corpo está quebrada, e vem a fase do humor negro. Meu humor transita aí.

Seus personagens mais importantes na TV – como Florindo Abelha, da novela Roque Santeiro, ou Arturo da Tapitanga, de Tieta – parecem fazer parte de uma mesma família.

Ary Fontoura – Isso porque o ator carrega consigo sempre alguma coisa de sua personalidade. Nada é tão perfeito assim a ponto de você fazer um personagem totalmente diferente de outro. Pode até modificar a maquiagem, mas de dentro de você sempre vem alguma coisa igual a todos.

O senhor se magoa quando dizem que suas peças são comerciais?

Ary Fontoura – Eu não derivei mais para o lado da experimentação porque resolvi sobreviver dessa profissão. E eu tinha de ser profissional. Desafio é a palavra. Eu sou um produtor de teatro, além de ator. As pessoas podem me perguntar por que eu não produzo coisas diferentes. Não produzo porque eu não tenho o auxílio de ninguém. E para manter uma empresa com meus atores rindo daqui até aqui, muito bem pagos, nada sendo sonegado. Eu não posso passar para eles as dificuldades que eu tive, quero mesmo que estejam felizes. Preciso procurar trabalhos que vão de encontro ao público.

Em sua mais recente peça, Marido de mulher feia tem raiva de feriado, que agora segue para Campinas, o senhor dá nome aos bois. Satiriza de maneira pesada da deputada Ângela Guadagnin (PT) ao ministro da Cultura Gilberto Gil. Não teme ser processado?

Ary Fontoura – Mas não estamos em uma democracia? Assim como falo deles, eles têm razão de reclamar se sentirem-se malfalados. Mas o que eu falo? Falo o que todo mundo fala.

O senhor fala que a deputada Ângela, por exemplo, irá liderar um bacanal na peça.

Ary Fontoura – E por que não? Se ela já transformou o reduto do governo em uma festa estranhíssima. (A deputada ficou conhecida ao protagonizar a dança da pizza no Plenário para comemorar a absolvição de seu companheiro do PT, João Magno, acusado no escândalo do mensalão). Eu reconheço que às vezes a pincelada é forte, mas a finalidade é uma só: mexer com a memória do brasileiro. É uma peça na qual todos os personagens não prestam. Ninguém vale nada no meu trabalho, todos são complicados e querem levar vantagem. Eu queria que o público entendesse que este não é o caminho. Quero mexer com as leis estabelecidas, com o que está errado, com o presidente da República. Não queremos mais que o presidente brinque, mas que ele tenha memória, que não se envolva em situações escusas. Queremos um presidente que represente uma nação que pretende ser do primeiro mundo. Queremos um presidente que não diga ?ah, ler é um saco, jogar futebol é que é bom?. A gente não quer uma coisa assim. Não conheço, aos 73 anos, um presidente para dizer ?ah, esse sim foi um grande presidente?. Getúlio Vargas era ditador, não vale. Jânio Quadros era um maluco, só não voava com aquela vassoura porque não tinha o apelido de Mary Poppins. João Goulart, Brizola, eram todos uma fantasia inexpressiva, gente que tentou fazer algo que nunca conseguiu. Ninguém sabia se eram ou não comunistas. Juscelino endividou o Brasil pela vida inteira. Fez uma capital lá no meio do mato e a construiu transportando tudo com aviões. Cimento, areia, terra, madeira, não dá. Fernando Collor, o que fez com o País? Fernando Henrique Cardoso maravilhou-se. Se eu tivesse de votar em alguém, votaria em uma pessoa com a consciência tranqüila: na mulher do Fernando Henrique Cardoso (Dona Ruth). Mas ela não vai nunca ser candidata, não vai se meter nisso nunca. Ela seria minha última ilusão de que esse País teria um grande presidente. Política hoje em dia é profissão. É uma máfia de pessoas que só querem ganhar, veja o exemplo desse aumento de 100% para o salário dos deputados, de R$ 12 mil para R$ 24 mil. E para eles fazerem o quê? Hein?

E o que nós vamos fazer?

Ary Fontoura – Nós? Nós vamos apreender.

E o que vocês artistas vão fazer?

Ary Fontoura – Não, vamos falar de nós, povo. Nós também somos povo, vamos falar do povo. O que o povo tem de fazer? Tem de sofrer.

Sofrer?

Ary Fontoura – Como é que você pode imaginar que o Fernando Collor tenha sido reeleito? E que o Severino Cavalcante por muito pouco não está de volta. Que dos sanguessugas ninguém foi condenado, virou tudo pizza.

Seu humor parecer nascer, na verdade, de um grande mau humor.

Ary Fontoura – É isso, meu humor surge do meu mau humor. Não posso ser bem-humorado ganhando o que ganho, olhando para o lado e vendo meu semelhante sem nada.

As pessoas falam isso, mas a verdade não é que todos somos assim?

Ary Fontoura – Sim, eu ganho e o resto que se dane.

O senhor também é assim?

Ary Fontoura – Sim, até eu sou. Eu não presto também. Mas estou aqui tendo uma chance. Nem todo mundo tem a chance de chegar para um repórter e falar o que sente para sair no jornal. Sou um cidadão brasileiro indignado com a situação do meu semelhante e sou mais indignado ainda porque sou preguiçoso, como todo mundo é, tenho sangue de barata, como todo mundo tem, e não tomo nenhuma providência, como todo mundo não toma.

Fazer teatro não é providência?

Ary Fontoura – Eu faço uma parte, e procuro fazer o melhor, mas não basta. Não se faz um país assim.

O texto das novelas não ficou muito esculhambado?

Ary Fontoura – Eu acho que o brasileiro lê pouco, o vocabulário das pessoas está cada vez mais reduzido, quase ninguém mais sabe escrever.

O senhor está falando do povo ou dos autores de novela?

Ary Fontoura – Aí o que acontece? Quem vê televisão? O público A, B ou C? Interessa para quem usa Colgate, Palmolive, o público E, F, G. Esse público tem acesso a quê? Devemos dar a eles o que eles querem. Hoje, se você usar dois verbos irá freqüentar os melhores lugares desse País. Transar, pintar, legal, pô. Estava eu fazendo exercício em Copacabana, no Rio, e parei para descansar num daqueles bancos. Havia dois garotos do lado, de 15, 16 anos. Fiquei ali ouvindo o que eles diziam. O papo era mais ou menos assim: ?Aí ela veio e eu ãh (gemendo) e ela ãh? ?E você?? ?Ah, e eu ãh, aí a mina veio e ãh, a mina chegou e ãh?. Isso durou 15 minutos, e sabe que eles se entenderam? Não sabem falar, não se expressam, como a gente vai ter público novo no teatro desse jeito se você vive da palavra, se a palavra é o mais importante? Há termos que as pessoas não sabem mais o que significam. Como você vai captar esse novo público? Só se der a eles o que quiserem, facilitando o máximo. É por isso que faço esse tipo de teatro, que é extremamente popular e sendo qualificado como caça-níquel porque eu trabalho na televisão e coisa e tal. Eu falo a linguagem que o povo entende. Arte é assim. Não adianta pintar um quadro abstrato se o pintor tiver de ir junto para explicar o que ele pintou. Isso não me interessa, nunca interessou.

Uma frase sua: ?Quem consegue viver sozinho tem o maior mérito.?

Ary Fontoura – Quem aprende a viver com a solidão conquistou o mundo.

É possível viver com a solidão?

Ary Fontoura – Tem que ser possível, é muito doloroso você procurar as pessoas em nome de sua solidão, você terá uma solidão acompanhada. Não vale. Eu vou me envolver com fulana porque estou me sentindo só. Temos que aprender a viver só.

E o senhor aprendeu?

Ary Fontoura – Estou aprendendo, já aprendi 90%. (AE)

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo