A cena se passa no meio de uma floresta nos confins do Brasil. Um tirânico chefe de quadrilha, que também é pai de santo, incorpora o espírito de Hitler – e a saudação “Heil, Hitler!” se transforma em “Saravá, Germânia!”. O bandido recebe o ditador nazista com tanta intensidade que acaba linchado. Foi com esse argumento heterodoxo que o escritor e dramaturgo alemão Ulrich Becher construiu seu manifesto antinazista, resumido na peça Makumba, que estreou em 1958 na Alemanha. Becher foi um dos cerca de 16 mil exilados de língua alemã que se abrigaram no Brasil após a ascensão de Hitler e que são objeto da exposição Heimat Brasilien (Pátria Brasil), que será aberta nesta terça-feira, 14, no Centro da Cultura Judaica de São Paulo.

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Como enfatiza a historiadora alemã Marlen Eckl, integrante do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da USP e curadora da exposição, o retrato que Becher pinta do país difere substancialmente daquele que foi consagrado pelo austríaco Stefan Zweig, o mais conhecido desses exilados e que se notabilizou pela visão lírica do livro clássico Brasil, País do Futuro.

“Zweig teria mudado de ideia se não tivesse se matado”, diz Marlen ao jornal O Estado de S.Paulo, referindo-se ao suicídio do escritor em 1942, em Petrópolis.

O Brasil sempre exerceu fascínio sobre esses europeus de fala alemã, mas a fantasia não impedia que os exilados enxergassem o óbvio: o Brasil era um país frequentemente citado como “estranho” e “sem sentido”, no qual não se sentiam inteiramente à vontade. Ademais, havia incontornáveis similaridades, guardadas as proporções, entre o regime getulista e as ditaduras nazi-fascistas europeias. Marlen cita a peça Samba (1951), de Becher, na qual o autor procura mostrar que mesmo um país distante e exótico como o Brasil, supostamente “harmônico”, nas palavras de Zweig, experimentava o alcance do nazi-fascismo. Um dos personagens é um delegado simpático a Hitler: “Meu pai apoiou o imperador Guilherme e eu sou pelo Adolfo”.

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Apesar da dura vida dos exilados alemães no Brasil, muitos acabaram se destacando – convém citar, entre vários outros, Herbert Caro, tradutor de Thomas Mann; o fotógrafo Hans Günter Flieg, que registrou a transformação urbana do Brasil; e Alice Brill, artista plástica e fotógrafa do cotidiano paulistano. “Quando o Brasil entrou na guerra ao lado dos Aliados, os refugiados alemães enfim se sentiram um pouco mais seguros – afinal, eram antinazistas”, explica Marlen. “O problema é que eram também alemães, e como tal corriam o risco de ser hostilizados. Logo, a situação deles sempre foi marcada pela contradição.”

A pesquisadora cita como exemplo o caso de Ernst Feder. Jornalista de reputação internacional, Feder se sentia profundamente incomodado com o “mito Vargas”. “É como se ele dissesse que esse paraíso tem seu lado escuro, suas sombras”, afirma Marlen. Ademais, Feder exasperava-se com o caráter “amistoso” dos brasileiros, que simplesmente não reagiam ao que ele via como grosseiras manipulações do Estado Novo. Ao mesmo tempo, porém, Feder toma emprestada de Zweig sua visão idílica, quase como a expressão de um desejo diante da barbárie revelada pelos nazistas, e escreve: “Os brasileiros conseguiram criar neste deserto de tristeza, depressão e medo da morte um oásis de paz, seriedade e confiança no futuro”.

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