Do cinza que preenche os corredores dos complexos penitenciários e a vida de muitos presos surgem cores vivas e fortes. Da sensação de horror e medo que vem de dentro das celas nasce sensibilidade, criatividade e religiosidade. A expressão através da arte é a forma que muitos detentos utilizam para preencher seus dias na prisão. "Muitos deles têm um dom natural, que só precisa ser desenvolvido através das aulas de pintura e outras modalidades artísticas que disponibilizamos", conta Cínthia Bernardelli Dias, diretora geral do Complexo Médico Penal. Ela explica que foi nas aulas de pinturas que alguns artistas foram descobertos. Esse é o caso de quatro internos que participaram de um concurso para eleger uma nova imagem para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
A iniciativa de integrar os presos ao concurso foi da responsável de planejamento do Departamento Penitenciário (Depen), Eliane Negrini, também freqüentadora da Igreja do Perpétuo Socorro, no Alto da Glória. Os quadros, depois de prontos, passaram pela votação de mais de mil fiéis. O preso Jorge Luis Pedroso Cunha pintou a imagem mais votada, que levou o primeiro lugar. "Os fiéis se espantavam quando sabiam que as obras eram de autoria de detentos. Com isso, os fiéis perceberam que de nada adianta levar uma vida de orações dentro do santuário e não praticá-la lá fora. Temos que ter um olhar de redenção, pois independente do delito que cometeram, eles são nossos irmãos", diz o padre Dirson Gonçalves, da Igreja do Perpétuo Socorro. Os artistas também fizeram alguns desenhos, que ilustram os livros de novenas da paróquia.
Em junho, diversos trabalhos dos presos da unidade prisional do Ahú em pintura, desenhos, restauração de móveis, história da arte, fotografia e música foram expostos na Escola de Música e Belas Artes. Os resultados, segundo Marilene Ferreira, assessora de eventos culturais do Complexo Penitenciário do Ahu, são presos mais auto-confiantes e mais preparados para enfrentar o mundo fora do presídio após o término da pena.
Ressocialização
As aulas de arte aos presos são ministradas por voluntários da Escola de Música e Belas Artes, que ensinam diversas técnicas. Essa é apenas uma das etapas do trabalho de ressocialização dos internos, que vem trazendo bons resultados. "Isso não é tudo no tratamento deles, mas pode colaborar. Alguns chegam aqui e se isolam totalmente. Com o tratamento, em especial o trabalho artístico, eles vão se sociabilizando e ficam menos agressivos", diz Marilene. Ela explica que o trabalho dá mais equilíbrio, auto-reflexão e tranqüilidade aos presos, fato que traz até menos trabalho aos seguranças do presídio. Segundo a assessora, dos mais de 800 presos do Ahu, pelo menos 300 participam dos projetos culturais e artísticos. "Eles normalmente vêm de mundos muito violentos. Com a arte, eles têm algo que nunca tiveram antes", diz a professora.
Da cela para as exposições
"À noite, ao invés de dormir, ele pinta", conta Cínthia Bernardelli Dias, diretora geral do Complexo Médico Penal, sobre o detento Benedito Gabriel, que teve 21 de seus mais de 80 trabalhos selecionados para uma exposição. De 117 autores do Brasil, Alemanha, França, México e Argentina que inscreveram suas obras, Benedito foi um dos 29 escolhidos pela comissão julgadora composta por críticos de arte. Seus quadros estão em exposição na Casa Culpi, antiga residência de imigrantes italianos tombada pelo patrimônio histórico em Santa Felicidade, na Avenida Manoel Ribas, 8450.
Além das aulas, da terapia, assistência religiosa e assistência social, as oficinas de arte são uma forma de ressocialização dos detentos. "É uma tentativa de devolvê-los um pouco melhores à sociedade", explica a diretora da unidade médica, para onde são levados presos que têm sua pena privativa (cumprida em presídios comuns) substituída por medidas de segurança para tratamento médico e psiquiátrico. Esse trabalho vem cumprindo com seus objetivos. No caso de Benedito, internado desde 1998, a diretora atesta que seu quadro de alta agressividade teve mudança radical em 2003, quando o dom artístico do preso foi descoberto e recebeu incentivos.
Os quadros de Benedito, pintados nos anos de 2003 a 2005, exaltam a figura humana, com destaque aos olhos e por isso sua exposição foi entitulada "O Olhar". Segundo o médico Rui Sampaio, psiquiatra e perito do Instituto de Criminalística, os olhos são o nosso principal contato com o mundo, como também podem expressar o inconsciente.
De forma geral, Sampaio conclui que a presença do olho nas pinturas de Benedito podem representar tanto sua visão do mundo externo, quanto seus sentimentos. Ao observar os quadros do preso, o psiquiatra diz que existem olhares de tranqüilidade, medo, pavor, passividade, entre outros, que podem ser o mundo interior do preso. Tudo isso, segundo o psiquiatra, foi colocado nas telas de forma inconsciente.
Luta pessoal
O fato de se expressar através da arte é uma defesa, onde inconscientemente o artista pega algo inaceitável pela sociedade (no caso de Benedito, a agressividade) e o torna aceitável (que são as obras de arte). Sampaio exemplifica que esse é o mesmo caso de lutadores de boxe. Alguns destes esportistas, agressivos por natureza, colocam sua raiva no ringue, algo aceitável e interpretado como esporte, pois se o fizessem nas ruas, estariam cometendo delitos. As diversas terapias, como a arte de Benedito, são formas de canalizar seus sentimentos negativos para coisas aceitáveis. A interrupção do tratamento, segundo Sampaio, na maioria das vezes pode agravar o quadro de agressividade, pois o artista perde o seu meio de expressão.
Também pelos quadros do preso, o psiquiatra conseguiu interpretar, de forma geral, que o artista passou por fases distintas. Inicialmente, Benedito pintava flores e a natureza, o que pode denunciar uma fase ingênua. A seguir, quadros com formas simétricas e geométricas, que podem denotar confusão de sentimentos. E já em sua fase atual, mais madura, que mostra principalmente o olho humano, há provavelmente uma interpretação do mundo externo ou então de seus desejos e aspirações internas.