Árido Movie, novo longa-metragem de Lírio Ferreira, teve sua estréia no Festival de Veneza com casa apenas pela metade. O público seguiu o filme com interesse (houve pouca defecção), mas aplaudiu apenas moderadamente. Trata-se de um público especial, composto pela crítica internacional, que assiste às prévias na sala Palagalileo. Depois de amanhã o longa será exibido para o público pagante, na Sala Grande, a principal do evento.
De toda maneira, a reação parcimoniosa pode se explicar pelo excesso de temas que o filme pretende abordar, tornando-se assim um tanto dispersivo. A história principal é a de um jovem apresentador de TV, Jonas (Guilherme Weber), que precisa voltar à cidadezinha do sertão onde nasceu para o enterro do pai (Paulo César Peréio), que foi assassinado. Com uma magnífica fotografia de Murilo Salles, o filme trabalha a oposição entre cidade e sertão, a questão indígena, a falta de água, o misticismo exasperado, a dominação exercida pelos donos da terra, etc. etc. e tal.
O foco ótimo, a sensação de perda de identidade do "estrangeiro" Jonas numa terra que não é a sua, entra tarde demais, fazendo com que o filme oscile entre o brilhantismo de certos momentos com a prolixidade de outros. Formalmente, é excelente. Confirma a mão do cineasta. Faltaram síntese e foco – qualidades que sobravam em Baile Perfumado, primeiro longa do diretor. Veremos a partir de amanhã como reage a crítica internacional.
Boa presença francesa na mostra competitiva com Vers le Sud (Em Direção ao Sul), de Laurent Cantet. De início, é uma história da vida privada: mulheres de meia idade, americanas e canadenses, se dirigem ao Haiti em busca de sol, mar – e sexo. Não esperam mais nada dos homens dos seus países e partem em busca do mítico vigor sexual do homem negro, e jovem. Bem, mas há certas coisas que o dinheiro não pode comprar, embora em aparência compre tudo. E assim, o que seria apenas uma aventura afrodisíaca das três balzaquianas, Ellen (Charlotte Rampling), Brenda (Karen Young) e Sue (Louise Portal) vira tragédia quando a realidade do Haiti aparece em cena por alguma coisa a mais do que o corpo perfeito de Legba (Ménothy César), cobiçado pelas três.
Cantet faz um filme ao mesmo tempo reflexivo e cheio de energia. Coloca na tela um tom documental ao fazer o contraponto entre o luxo exótico do hotel, onde ficam as mulheres, e as ruas miseráveis de Porto Príncipe. Essa fricção dá uma pulsão diferente à história, enriquecida também pelos depoimentos de Brenda, Ellen e Sue, que falam para a câmera como num documentário.
Também para a câmera fala Albert (Lys Ambroise), o hoteleiro, que relembra a história de resistência do seu país e de como agora ele havia sucumbido a uma força colonial mais poderosa que as armas – o dólar. A originalidade – e a força – do filme de Cantet está em mostrar da maneira mais clara possível, mas sem nenhum didatismo, não apenas a contradição de classes sociais em nível internacional, mas aquilo que um velho filósofo alemão chamava de "o poder dissolvente do dinheiro". Vers le Sud não chegou a levantar a galera. É inquietante demais para isso.
Na seleção de 2005, Portugal foi privilegiado – além do novo Manoel de Oliveira, O Espelho Mágico, conseguiu inscrever um segundo filme na disputa pelo Leão de Ouro. Trata-se de O Fatalista, que João Botelho adaptou do romance filosófico do enciclopedista francês Denis Diderot 1713-1784). Esse clássico já havia sido parcialmente utilizado por Robert Bresson em seu Les Dames du Bois de Boulogne. É um texto vertiginoso, que tenta explorar questões como o livre arbítrio e a possibilidade do ser humano controlar o próprio destino.
No filme, vemos o relacionamento entre um homem rico e seu chofer, Tiago (Rogério Samora), o "fatalista" do título, para quem "tudo o que acontece aqui embaixo já estava escrito lá em cima". A ação, se o termo cabe, se limita ao relato que Tiago faz ao patrão de suas aventuras amorosas. Botelho explora com inteligência as possibilidades que o texto oferece, em especial ao colocar em relevo as relações entre classes sociais e também o relativismo moral. Enfim, é uma obra libertária, que cresce na parte final, quando Botelho usa alguns procedimentos de distanciamento e metalinguagem, implícitos na narrativa off da história. Acabou agradando o público.