Tendência involuntária ao drama não é característica exclusiva de qualquer povo, mas isso não quer dizer que seja exclusividade de uma ou duas nações. E cada um que tenha o dom de sofrer a plenos pulmões – seja português, espanhol, mexicano ou brasileiro – costuma mostrar isso de um jeito bastante particular. Depois de 60 anos de telenovela, não é de se duvidar que haja um dramalhão tipicamente brasileiro, e que quase nada tenha a ver com o tal “dramalhão mexicano”, que é, em si, um termo pejorativo.
Não por acaso, justamente “O Astro”, a produção especial que veio homenagear o aniversário da novela brasileira, tenha se tornado, ao longo dos seus 60 capítulos, uma síntese da nossa teledramaturgia. “Não é querer falar mal dos mexicanos, que têm produções excelentes, mas nós temos o nosso próprio dramalhão, que faz parte do que nós somos, latinos”, anota o diretor-geral Mauro Mendonça Filho, que recebeu a reportagem no estúdio de gravação, que nesta reta final é mantido a sete chaves.
O amor rasgado de Amanda (Carolina Ferraz) dizendo a Herculano Quintanilha (Rodrigo Lombardi) algo como “estou totalmente subjugada por esse amor” poderia parecer deslocado num mundo tomado de cinismo. À parte dos números de audiência, que, depois de algumas oscilações, chegam aos capítulos finais demonstrando vitória, fica a pergunta: por que ser tão romântico? “Tudo veio da vontade de ser fiel ao texto da Janete. Quando você se depara com uma cena em que o personagem diz ‘eu quero colher o grito da sua alma cheia de tormento’, você pensa: ‘caramba, como vou fazer isso?'”, diverte-se o diretor. “Daí, só mesmo embarcando no folhetim. De maneira subjetiva, chegamos a um aspecto retrô com uma roupagem mais moderna. Esse jeito mais carregado do texto e das interpretações poderia parecer antiquado, mas o público mostrou que não é.”
Mauro Mendonça Filho, ex-punk, mantém um jeitão hardcore misturado com a delicadeza com que conduz o set de filmagens e dá forma ao texto de Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro, que adaptaram a novela ícone de Janete Clair, de 1978. Ele e os autores mexeram em muita coisa do original para trazê-lo aos dias de hoje, mas mantiveram e, quiçá, aprofundaram o romantismo. “É, acho que já perdi o medo de mexer com ícones”, reflete o diretor, que assinou o remake de “Irmãos Coragem” em 1995 e a minissérie “Dona Flor e seus Dois Maridos”, em 1998. Mal acabou “O Astro”, ele já planeja a produção da releitura de “Gabriela”, novela de Walter George Durst, baseada no romance de Jorge Amado, que estreia no ano que vem para cristalizar o horário da “novela das 23 horas”. “A adaptação do Walcyr (Carrasco) partirá do livro, mas é claro que já estou pensando nas cenas que todos esperam rever, como aquela da Gabriela em cima da igrejinha”, adianta ele, que quer Juliana Paes como protagonista – para isso, está negociando com a autora Glória Peres, que também sonha com a atriz em sua próxima novela.
Longe de querer “inventar a roda”, coisa impossível na televisão, Mendonça misturou referências de época da novela de Janete Clair com coisas de outros tempos, e que hoje já soam nostálgicas. As cenas de Amanda e Herculano não teriam a mesma carga vintage não fosse o embalo de “Easy”, dos Commodores, por exemplo. No casamento de Márcio (Thiago Fragoso) e Lili (Alinne Moraes), outro ícone deixou tudo perfeito: “November Rain”, do Guns’n’Roses, evocando o clássico clipe matrimonial roqueiro. Mas o diretor não espalhou referências impunemente – e levou várias pedradas pela internet. “Não ligo mesmo para isso, porque tudo vem de alguma coisa”, resume.
Não é nada que lhe tire o sono, ainda mais quando se pensa que em arte quase tudo vem de algum lugar. No meio de tanto ruído, alguém pode ter notado que a pergunta “Quem matou Salomão Hayalla?” não ecoou tanto quanto em 1978, q,uando foi caso de parar o País. Mauro não esperava diferente. “Hoje, quase toda novela tem um ‘quem matou?’. Seria muito difícil repetir a comoção de 78, por isso seria um erro apostarmos todas as nossas fichas nisso”, admite, contando que, mesmo assim, não é bom facilitar: a cena fatídica será gravada apenas amanhã à tarde. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.