Poucos filmes são tão paulistanos quanto O Bandido da Luz Vermelha, do cineasta catarinense Rogério Sganzerla, que morreu ontem no Hospital do Câncer, com 57 anos. Mas ele chegou a São Paulo nos anos 60, época de grande efervescência cultural e política. Era assim natural que em seu longa-metragem de estréia usasse a metrópole como palco, como motivo e essência desse primeiro e genial ensaio artístico.
O corpo de Rogério, que tinha um tumor cerebral, seria cremado hoje na Vila Alpina. Mas suas cinzas serão levadas para sua terra natal, Joaçaba, segundo desejo da viúva, a atriz Helena Ignez, com quem Rogério teve duas filhas – Sinai e Djin.
Ele estava doente havia tempo, como se sabia no meio cinematográfico. Uma de suas últimas aparições públicas foi no Cine Odeon, durante o Festival do Filme do Rio.
Rogério, que não podia mais andar, foi conduzido de cadeira de rodas para assistir à pré-estréia de Filme de Amor, do seu amigo Júlio Bressane. Foi aplaudido e homenageado pela platéia. Na saída, conversou com outro amigo, o cineasta Ruy Guerra. Comovido, Ruy disse depois que falara de cinema com Sganzerla. ?Ele está perfeitamente lúcido, 100% lúcido, e com o corpo devastado?, lamentou.
Há um motivo especial para a amizade dos dois. Rogério entrou no cinema pela porta da crítica. Ainda muito jovem, foi acolhido por Décio de Almeida Prado, que na época dirigia o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, e seu texto de estréia foi sobre Os Cafajestes, filme de Ruy Guerra, de 1962. Continuou no Suplemento e colaborou também com o Jornal da Tarde. Sempre escrevendo sobre cinema.
O exercício da reflexão sobre filmes levou-o à realização. Rodou um curta-metragem, Documentário, e em seguida partiu para seu primeiro longa, O Bandido da Luz Vermelha. O ano era 1968, e o impacto de lançamento foi grande. Nele, Rogério cozinhava uma série de influências que iam do cinema da nouvelle vague à obra de Orson Welles. Incorporava um tipo de narrativa popular a citações mais cultas, e promovia um sincretismo cinematográfico como nunca houve igual. O filme era devastadoramente novo e surpreendente. Ali estava um cineasta a ser observado, um ?autor?, como se dizia então, na melhor acepção do termo. Na mesma linha veio em seguida A Mulher de Todos, estrelado por Helena Ignez.
Vieram depois filmes como “Sem Essa, Aranha”, Copacabana, Mon Amour, Carnaval na Lama, Fora do Baralho, Abismu. Trabalhos de ruptura, feitos com poucos recursos e menor ainda inserção em um mercado progressivamente conservador. São obras que exigem ainda uma reavaliação crítica, que certamente surgirá com o desaparecimento do cineasta.
Welles
Orson Welles, referência desde o primeiro longa-metragem de Sganzerla, passou em seguida a ser a sua verdadeira obsessão. Foi em torno da viagem de Welles ao Brasil, em 1942, que Sganzerla construiu o imaginário de toda essa metade final de sua obra.
De fato, a viagem é emblemática. Welles veio ao Brasil como parte da política de boa vizinhança de Roosevelt, que procurava aliados para a guerra contra a Alemanha. O Estado Novo de Vargas era oscilante. Pendia ora para um lado, ora para outro. Welles chega para filmar o Carnaval e as belezas do País. Faz amizade com Herivelto Martins e Grande Otelo. Sobe às favelas e registra um movimento de jangadeiros que reivindicavam direitos trabalhistas. É chamado de volta aos Estados Unidos e perde a confiança dos estúdios. Seu documentário, It?s All True, ficou inconcluso.
Em suas biografias, Welles sempre falava de sua fatídica viagem ao Brasil. Sganzerla via nela uma metáfora mais do que interessante sobre o relacionamento do brasileiro com o estrangeiro, o ?outro?. Definia a nacionalidade a partir daí. E inspirou-se nessas idéias para rodar Nem Tudo É Verdade, Tudo É Brasil, e seu último filme, O Signo do Caos, apresentado em novembro no Festival de Brasília. Rogério ganhou as estatuetas de montagem e direção. Mas não pôde comparecer à capital para recebê-las.
Representando-o, sua filha Djin relatou no palco uma conversa que tivera com o pai. Rogério, já bastante enfraquecido, disse à filha que só o cinema poderia salvá-lo àquela altura. Mas o cinema que, quando praticado por um artista como Rogério tanto bem pode fazer à humanidade, infelizmente não tem esse poder.
?Perdemos o Godard brasileiro?
Segue a repercussão da morte de Rogério Sganzerla no meio artístico.
Ugo Giorgetti, cineasta: ?Eu não tinha contato pessoal com Sganzerla, mas sinto muito sua morte, que considero simbólica. Como cineasta, ele representa um tipo de cinema que hoje é apenas um fantasma de outros tempos. Atualmente o cinema brasileiro está tomado por uma pobreza absurda, tudo cada vez mais igual e, pior, igual na mediocridade, na maneira abjeta de cortejar o público, um cinema descompromissado com qualquer idéia de investigação ou reflexão. Sganzerla era uma exceção nesse panorama, um cacto nesse deserto, algo de diferente e importante que está indo embora?.
Arrigo Barnabé, músico: ?Trabalhei com ele entre 1984 e 1985. Convivemos bastante naquela época. Mas gostaria de ter trabalhado mais com ele. O Sganzerla era uma pessoa muito bondosa. Quando ele me mostrou O Bandido da Luz Vermelha, fiquei encantado. Foi uma das melhores que já vi. Lembro-me que ele era apaixonado pela história de Orson Welles no Brasil. Eu gostava muito dele como pessoa. Uma pena?.
Paulo César Saraceni, cineasta: ?É muito triste. Ele era um grande cineasta, um grande amigo. Sem dúvida, um dos maiores cineastas brasileiros, um grande crítico, um profundo conhecedor do cinema. Ele adorava Orson Welles e adotou seu estilo em seus filmes, mas também influenciou muita gente. Sempre acompanhei sua obra e acho uma grande perda para o cinema brasileiro, ainda mais neste momento, em que o cinema toma um rumo que eu não gosto, seguindo por uma lado bem comercial. Sganzerla era um amante da arte cinematográfica, uma esperança de mudança nestes tempos?.
Cacá Diegues, cineasta: ?Rogério Sganzerla foi um dos cineastas mais importantes do cinema brasileiro. Tem certos filmes que são marcos de luz na nossa história. Este é o caso de seu filme O Bandido da Luz Vermelha. Pode-se falar do cinema nacional antes e depois desse filme. O que caracteriza os trabalhos de Sganzerla é fato de o cinema parecer ser inventado a cada novo filme dele?.
João Batista de Andrade, cineasta: ?Conheci o Rogério no começo de carreira. Lembro-me dele montando O Bandido da Luz Vermelha em São Paulo. Ele sempre foi muito anárquico, racional, mas extremamente talentoso. Muitas vezes os técnicos tinham dificuldade em trabalhar com ele, por ser tão inquieto e estar sempre inventando novas coisas. Lamento bastante. Mas ele nos deixa seu talento impresso nos filmes?.
Carlos Reichenbach, cineasta: ?Tenho a impressão que esses últimos meses marcam um período negro para o cinema brasileiro, mais especificamente para o cinema de autor. Perdemos três personalidades: Walter Hugo Khouri, Jairo Ferreira e agora o Sganzerla. Pessoas importantes dentro do cinema. Sganzerla tem um importante papel na história, no desenvolvimento da linguagem do cinema nacional. Perdemos o Godard brasileiro. Todo o cinema experimental ou cinema de invenção é tributário a ele, o realizador de dois marcos O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos?.