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Aos 70, Jerry Adriani lança autobiografia e disco com canções de Raul Seixas

Era lá pelo amanhecer dos anos de 1970 quando Jerry Adriani chamou Raulzito para cantarem só os dois, sentados na sala, de violão em punho, sem sonhos nem ilusões. Não precisavam mais disso. O baiano Raul já havia chegado ao Rio para fincar as vigas de sua seita e o paulista Jerry não andava mais nas ruas com a tranquilidade dos anônimos. Ali, lado a lado, como compadres que eram, Jerry só queria de Raul a beleza da verdade do instante, a força das primeiras ideias. Era manhã. Raul deu mais um gole na vodca e chorou. Chorou e depois riu e depois chorou de novo. Estava bêbado. Não tocou nada, mas disse, mais com o hálito do que com palavras, que Raulzito se transformava perigosamente em Raul Seixas.

Jerry também havia passado por sua transformação. Antes de surgir 1964, era Jair Alves de Sousa, garoto do Brás, voz firme, topete laçador e altíssimo potencial de galã. Os tentáculos da Jovem Guarda de Roberto, Erasmo e Wanderléa já o tinham alcançado e o colocado diante das plateias mais estridentes. Uma delas estava no clube Bahiano de Tênis, em Salvador, espaço elitista de pouca tolerância com as classes mais populares e palco de aproximação profética de duas linhagens do rock brasileiro: Jerry Adriani e Raul Seixas. Alguns dizem que Raul estava lá, ele mesmo, mais em osso do que carne, acompanhando Jerry com seus Panteras depois que a banda escalada originalmente para isso, Os Jormans, havia sido impedida pela diretoria do Bahiano por uma questão cromática. Dois de seus integrantes eram negros. Outros dizem que Os Panteras se apresentaram sem o líder Raul nesse dia, que logo depois apareceria para a turnê com Jerry pelo interior da Bahia. E o que Jerry diz?

Jerry Adriani, 70 anos de idade no próximo dia 29, vai dizer tudo aquilo que se lembra em um livro. Sua autobiografia está sendo finalizada com a ajuda do produtor e pesquisador Marcelo Fróes, para lançamento ainda este ano. “Eu não tinha ideia da dificuldade de se fazer um livro como esse. Escrevi tudo o que me lembrei da vida do Jair (ele mesmo, antes de ser Jerry). Mas quando vem 1964 e eu viro Jerry Adriani, começo a misturar muito a primeira pessoa do singular com a primeira do plural. Tive de procurar alguém para me ajudar.” Um disco também está sendo preparado para este ano. Jerry vai cantar 15 músicas feitas por Raul entre 1967 e 1971, considerada a fase dos primórdios. Canções como Doce Doce Amor, Lágrimas nos Olhos, Sheila e Ainda Queima a Esperança. Fróes está envolvido nos dois projetos. Ao mesmo tempo em que se prepara para gravar e lançar o álbum por seu selo Discobertas, trabalha na segunda parte da biografia. “Vou montar uma pauta gigante e fazer as perguntas para termos uma entrevista bem grande.” A ideia é estimular as memórias de Jerry e fazê-lo falar de assuntos sobre os quais poderia não conseguir escrever.

Depois de ver Raul na Bahia, no dia do show ou na turnê seguinte, Jerry lançou uma cruzada para levar o roqueiro ao Rio de Janeiro. Raulzito e os Panteras eram bons demais como “banda de luxo” de Salvador, tocando nos melhores clubes para os maiores artistas de rock que baixavam na Bahia daqueles tempos, mas podiam mais. De olho em Raulzito, sem fazer tanta questão assim dos Panteras, Jerry comprou briga com o todo-poderoso da gravadora CBS no Brasil, Evandro Ribeiro, e o convenceu de que aquele baiano seria um bom produtor para os seus discos. Assim que Raul chegou ao Rio, atendendo aos seus apelos, foi trabalhar na CBS produzindo primeiro três discos de Jerry e depois outros artistas, compondo, aprendendo e iniciando uma das metamorfoses ambulantes mais flagrantes da música brasileira. Morria a ingenuidade brejeira de Raulzito, nascia o mito de Raul Seixas – com tudo de mais espetacular e trágico que a ideia poderia significar. “Eu conheci Raulzito, nunca tive nada com Raul Seixas”, diz Jerry Adriani.

Ele mesmo, Jerry, é a engrenagem principal desse processo. Sem saber ao certo o que fazia, colocou Raul em uma grande gravadora na cadeira de produtor, uma espécie de sala com vista privilegiada para o mar. Era ver, ouvir e absorver. Assim que o vulcão despertasse, ninguém o seguraria. “Eu fiquei impressionado com o fato de ele ter conseguido concretizar aquelas ideias que tinha. Cara, ele conseguiu, é impressionante!”

Mas Jerry também conseguiu. Ele foi mais linear em sua evolução, não deu os mesmos giros de linguagem e não criou uma persona pública nem próxima da figura messiânica de Raul, mas não sucumbiu na tempestade pós-Jovem Guarda. Sem máscara nem barba, fez votos de fidelidade ao rock a ponto de sobreviver à dissolução do movimento e de estar forte mesmo 20 anos depois, quando chegasse o segundo amigo profeta, Renato Russo.

Antes disso, Jerry sofreu com o bombardeio que a música brasileira desferiu nos roqueiros em 1964, nos campos da TV Record. A batalha que não deixou mortos nem feridos rende mais histórias para sua biografia. De Elis Regina, Jerry Adriani recebeu o mais sincero e profundo desprezo. “Eu a conhecia, éramos colegas de emissora, ela não poderia me tratar daquele jeito.” Jerry estava a poucos metros de Elis, na nada romântica fila do cachê da TV Record. Chegou simpático, cheio de boas intenções. “E aí Elis, como estão as coisas?” Elis lhe ofereceu as costas. Anos depois, os dois voltaram a se encontrar no elevador de uma gravadora. Era seu dia da vingança. “Oi Jerry Adriani”, disse ela, ao lado do marido Cesar Camargo Mariano. Silêncio. “Jerry, ela está falando com você”, disse Cesar. Mais silêncio. “Não vai responder?” “Não Cesar, e ela sabe por quê.”

A desativação do Programa Jovem Guarda na grade da TV Record, em 1968, é ainda estranha aos olhos de Jerry. Ele levanta uma lebre: “Afinal, por que acabaram com aquele programa quando o movimento ainda estava em alta?”. A história de que o fim da Jovem Guarda se dá por causa da ida de Roberto Carlos para o Festival de San Remo, na Itália, e de sua instantânea conversão de roqueiro para cantor romântico, não desce pela garganta de Jerry. “E por que não tentaram um outro apresentador para o programa? A Jovem Guarda, ao contrário do que pensam, incomodava a MPB da esquerda, mas também a ditadura, a direita. Nós estávamos contestando os costumes sociais.” Jerry viveu para contá-la.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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