Joyce fez algo que a música brasileira não havia visto ainda. Ao 70 anos, ela pega o primeiro álbum que lançou na vida, há 50 anos, quando tinha 20, e refaz música a música, na mesma ordem. Grava todas de novo e lança Joyce Moreno 50, seu primeiro repertório, com uma série de participações especiais e arranjos bem diferentes dos originais, revelando um nível surpreendentemente elevado para a estreia de um nome que poucos conheciam. Além das onze faixas originais, traz mais duas: Com o Tempo, música sua para uma letra tocante de Zélia Duncan, e A Velha Maluca.

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A regravação de um disco que já vinha com a inédita de Paulinho da Viola (Ansiedade, até hoje nunca gravada pelo autor); Bloco do Eu Sozinho, de Marcos Valle e Ruy Guerra; a divina Litoral (de Ronaldo Bastos e Toninho Horta, um jovem garoto também sendo lançado naquele ano) e Choro Chorado (parceria de Joyce com Jards Macalé, que tiraria suspiros de Jacob do Bandolim) é uma atualização cheia de aprendizados. Dois shows serão feitos no Sesc Belenzinho, nos dias 6 e 7 de julho.

A essência jazzística de um grupo pequeno muda muito as canções quando comparadas às versões originais, sobretudo as que traziam muitas cordas e sopros de época pensados pelo maestro Lindolfo Gaya. Outros arranjos foram de Dori Caymmi. O núcleo que a acompanha agora são o baterista e seu marido Tutty Moreno, o pianista Hélio Alves, o baixista Rodolfo Stroeter e muitos convidados ligados emotivamente ao disco. O jovem bandolinista Fabio Peron toca no choro Improvisado; André Mehmari faz piano para apenas sua voz em Superego; Roberto Menescal traz sua guitarra elegante em Cantiga de Procura; Alfredo Del Penho segura o violão que já foi de Dino 7 Cordas em Choro Chorado; Tom Andrade, o neto de Joyce, percussionista e cantor do grupo vocal Equale, aparece em Ave Maria, de Caetano Veloso; o próprio autor Toninho Horta, que teve com Joyce sua primeira música gravada, faz a guitarra de Litoral; Danilo Caymmi toca flauta em Me Disseram; e Zélia Duncan canta em Com o Tempo.

A voz, o violão e a sensibilidade por um repertório que não errava. A Joyce de 20 anos estava toda ali, dando as cartas que jogaria pelos próximos 50, por mais tentações que aparecessem para que escolhesse outros caminhos. “Não faltaram oportunidades”, ela diz sobre as portas que se abriram. “Eu tenho certeza de que levo uma vida muito mais simples por causa dessas minhas escolhas, mas sempre digo que eu não faço carreira, faço música.”

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A bela Joyce estava ali parecendo repetir essas mesmas palavras que diz hoje por telefone, de sua casa no bairro de Humaitá, Rio, quando gravava um disco impressionantemente maduro para que fosse seu primeiro. Poucos artistas começaram tão bem, com colaborações de gente tão grande. Sua harmonia já impressionava e seus versos fizeram Vinicius de Moraes escrever um longo texto na contracapa do disco. “Eu poderia falar aqui da Joyce morena, um broto bacana de Copacabana, de olhos verdes, riso meio triste e boca de menina amuada. Uma garota moderna e considerante, com uma carinha de lua nova em céu de tarde e toda circunflexa…” E então, começa a fazer elogios inspiradíssimos e diz, a certa altura, “pois essa é a Joyce que vai dar o que falar: a Joyce que é toda musicalidade, que tem em alto grau o sentido das palavras e conhece o mistério de seu casamento com as notas”.

Vinicius aposta que Joyce, se quisesse, poderia fazer a vida ‘apenas’ como cantora. Só aí, ele erra. Já em 1968, ela sabia que não queria ser apenas fã ou amiga de Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, família Caymmi, enfim, baianos, cariocas, paulistas e mineiros, tropicalistas ou nacionalistas. Uma jornalista certo dia entrou em sua casa e viu as fotos com todos eles. Surpresa, perguntou: “Puxa, mas você nunca pensou em namorar um desses caras?”. Joyce respondeu: “Não, eu queria era ser um desses caras”. Sua composição nascia ali com mais força que os atributos que já chamavam a atenção de Vinicius: o violão ainda não era o grande violão de Joyce (até porque quem toca no disco é Jards Macalé) e a voz, mesmo afinada, era apenas a de uma garota. “Eu já não estava me incluindo na prateleira das cantoras.”

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Muitas das letras de Joyce 1968 traziam um conteúdo que hoje seria considerado bandeira feminista. A mulher tomava a narração e lamentava ou exigia posturas objetivas do sexo oposto. “Se eu quisesse arranjar um marido / Não tinha escolhido de te adorar / Ia ser mais castigo que prêmio / Um homem boêmio pra eu sustentar”, ela canta em Não Muda Não. “Você tão carinhoso como é / Negando um pedaço / Do seu abraço / Feriu o meu orgulho de mulher”, ela encerra Improvisado. “Já me disseram / Que meu homem não me ama / me contaram que tem fama / De fazer mulher chorar”, volta ao assunto em Me Disseram. Aqui, uma reação de plateia marcaria sua carreira antes mesmo de sair o primeiro disco. Um ano antes, 1967, Me Disseram concorria no 2º Festival Internacional da Canção quando uma vaia ecoou forte no ginásio. “Isso foi por causa do termo ‘meu homem’, que eles consideravam indecente”, lembra.

O cronista Sergio Porto, mais conhecido pelo pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, escreveu que tal expressão se tratava de uma “vulgaridade”. A mesma crítica deixava escorrer todo seu machismo também quando falava de Superego, uma canção que abriu a porta de Joyce para as estranhezas harmônicas. Sua beleza assustou um jornalista da época. “Uma grande música, difícil de acreditar que tenha sido feita por uma mulher.”

A letra de Zélia Duncan para Com o Tempo talvez seja o resumo melhor da regravação de um álbum, 50 anos depois: “Com o tempo / fui ficando mais moça / Mais olhos, menos onça / Mais tempo, menos hora.” A música de Joyce, 50 anos depois, está mais jovem.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.