Os desfiles das escolas de samba no Carnaval inspiram escritores, cantores, contadores de histórias e estudiosos. Entre diversos estudos realizados, o antropólogo Reinaldo Soares, da Universidade de São Paulo-USP, estudou o cotidiano de uma escola de samba paulistana: o caso da Vai-Vai. Seu objetivo: analisar o processo de produção do ciclo carnavalesco do Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai, constituída em sua maior parte por negros. Localiza-se no bairro do Bexiga, nas proximidades da região central da cidade de São Paulo.
A análise do cotidiano permitiu ao pesquisador perceber que impera no decorrer do ano um ethos hedonista, ou seja, é a busca do prazer que se pretende através da realização de bailes e festas. Tais atividades mobilizam familiares, parentes e simpatizantes, que se mantêm unidos por códigos de lealdade estabelecidos a partir da vivência no mundo do samba. A partir de novembro, o ethos hedonista minimiza-se, o ambiente torna-se mais tenso, pois é preciso pensar na competição carnavalesca; há significativo aumento de brancos da classe média que passam a fazer parte do dia-a-dia da escola, quer seja para comprar fantasias, quer seja para participar dos ensaios.
Caráter empresarial ou sociedade alternativa
O discurso dos sambistas sugere que a Vai-Vai é um espaço democrático baseado em uma estrutura igualitária na qual cor, classe social, nível de escolaridade e idade não funcionam como fatores de diferenciação. ?A noção de um espaço à parte da sociedade, baseado na eqüidade de seus membros, só existe no imaginário dos sambistas. Na prática cotidiana a Vai-Vai, como qualquer outra instituição, revela uma hierarquia complexa na qual nem todos têm a mesma importância e nem o mesmo poder de decisão. O tratamento destinado aos integrantes das alas de maior prestígio, como diretoria e bateria, e os compositores ocorre de forma diferente do tratamento recebido pelos integrantes das demais alas, expôs os pesquisador.
Com isso, de acordo com Soares, a Vai-Vai tenta reeditar o Carnaval como uma communitas, na conceituação de Turner (1976), isto é, como sociedade não estruturada, baseada na igualdade entre seus membros. O antropólogo compreende que eles queiram manter essa imagem, pois as escolas de samba nasceram como uma alternativa para os negros que tinham dificuldades de conseguir espaços de lazer. Elas funcionaram como alternativa ao racismo brasileiro e criaram um espaço onde os negros não eram discriminados. Revelar sua hierarquia e seus conflitos poderia comprometer essa imagam da agremiação como communitas.
Relações
Membros da Vai-Vai não consideram conflitivas suas relações com os brancos. O pesquisador explica que ?se alguém freqüenta a escola às vésperas do Carnaval poderá não perceber qualquer conflito entre negros e brancos. Mas no dia-a-dia, durante o ano, é possível perceber algumas situações conflitivas. Durante uma reunião de uma das alas, em meio a uma discussão sobre a disposição das alas na avenida, um sambista branco tentou dar um palpite, mas em seguida um sambista negro falou em tom jocoso: ?Branco aqui não tem vez?. Depois desse comentário todos os participantes riram. Isso é muito significativo, pois o riso coletivo só ocorre quando o que é dito tem significado para o grupo?.
O pesquisador relata ter entrevistado uma sambista branca. Ela afirmou que quando ingressou na escola chegou a reclamar com a diretoria por ser discriminada. Outros fatos parecidos acontecem no cotidiano da escola e podem passar desapercebidos aos sambistas, mas que não escapam da visão de um observador interessado em investigar as relações raciais. É claro que da mesma forma que ocorre o preconceito contra o negro, e isso ocorre de forma sutil, não há demonstrações abertas de preconceito contra os brancos, pois isso fere a etiqueta das relações raciais, analisa o pesquisador.
O autor considera que o aspecto mais importante é que a Vai-Vai representa um espaço de sociabilidade para os negros paulistanos que possuíam poucos espaços de lazer na cidade. A escola de samba funciona como um ícone da resistência negra na cidade de São Paulo, pois apesar das inúmeras tentativas da vizinhança de classe média de expulsá-la do bairro, a Vai-Vai permaneceu, cresceu e tornou-se uma das mais tradicionais e respeitadas escolas de samba da cidade, sendo até hoje a maior vencedora do desfile paulistano.
Para os sambistas, mais do que um estilo musical, o samba se conforma com um estilo de vida, pois, como diz Soares, ?ser um vaivaiense implica em ter estética própria, dançar de forma diferenciada, respeitar determinadas regras e ser fiel à sua agremiação. A convivência em uma instituição deste tipo permite aos seus integrantes uma leitura singular do mundo?.
Para outras informações, acesse:
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-08102005 144552/publico/DissertacaoReinaldo.pdf.
Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná – zeliabonamigo@uol.com.br