Algo acontece quando os tambores deslocam o acento rítmico. O tempo fraco vira forte, faz a introdução e emite o chamado. Outros instrumentos de marcação atacam e se cruzam, cortando-se em pausas e completando-se em notas. As palmas das mãos marcam a clave e os pés não se seguram. Começa ali um mistério que já dura oficialmente cem anos, desde a gravação de Pelo Telefone, de Donga, sem que ninguém o tenha decifrado. Afinal, dentre as centenas de ritmos urbanos e rurais no País com matrizes na cultura africana, por que a maior contaminação foi deflagrada pelo samba? E, tecnicamente, o que acontece com aquela sobreposição de ritmos que provoca tamanha sedução? O que o samba tem que o frevo, o carimbó, o maracatu ou mesmo o baião não têm?

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O samba que se oficializou no País, no entanto, é apenas um dos que se formaram por aqui. Há muito mais samba do que se imagina ou se pode perceber por meio da mídia. O artista Antonio Nóbrega, pernambucano militante e freveiro ativista, tem um espetáculo a partir desta sexta (26), no Sesc Pinheiros, que permite perceber a força do gênero centenário e da existência da grande árvore dos tambores. Até dia 4 de setembro, seu show Semba coloca um especialista da música recifense abordando formas de samba oficiais e ‘underground’, com direção de Edmilson Capelupi e cenografia de Maria Eugênia Almeida. Nóbrega estará ao lado de Cleber Almeida (bateria), Daniel Allain (sopros), Edson Alves (cordas e baixo), Zezinho Pitoco (sopro e zabumba), Léo Rodrigues (percussão) e Olivinho (sanfona), além de Capelupi também nas cordas. Cinco bailarinos também estarão em cena.

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Nóbrega começa a conversa já respondendo à questão do ritmo. “O que o samba tem que o frevo ou o baião não têm é uma sincopação, um temperamento mais sincopado (o deslocamento dos tempos fortes para os fracos). E ele faz isso com sutileza, leva esse comportamento às últimas consequências.”

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Uma oficina programada para o dia 30 vai discutir e buscar entendimento nas origens africanas. Da Polirritmia Africana aos Pulsos Rítmicos Brasileiros vai mostrar a forma como brasileiros assimilaram as batidas de seus ancestrais africanos. “Acho que ainda há muito o que estudar. Não temos ainda, além de Câmara Cascudo, uma genealogia do samba, algo que crie uma linha do tempo cultural do gênero.”

O samba que Nóbrega chama de oficial é aquele conhecido graças a nomes como Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Beth Carvalho. O partido-alto, ou samba de roda, teve as gravadoras para promovê-lo, as rádios para divulgá-lo e um país de compositores para usá-lo como matriz. Assim, outras formas de samba, segundo a percepção de Nóbrega, ficaram de lado. Casos da umbigada, o batuque paulista, o carimbó paraense, o tambor de crioula, o coco nordestino e o samba rural paulista. O samba rural do Recôncavo Baiano, por sua vez, estaria mais próximo na família do samba oficial. “O Brasil está muito jovem com relação à música que ele tem”, reflete. Por que o caboclinho pernambucano, por exemplo, não ganhou caráter de ritmo oficial? E o maracatu rural, que só teve protagonismo durante o movimento de Chico Science batizado mangue beat? O que o faz estar sempre enraizado em suas origens, em vez de ganhar asas como o samba fez?

O frevo é outro exemplo que reforça a soberania do samba. Se ele também é um gênero saído dos troncos negros e se também se desenvolve na metrópole, o que o acorrenta, em seus mais de 100 anos, em um único Estado? Qual a dificuldade que os não pernambucanos têm de produzir e dançar frevos? Nóbrega vê duas razões para o fenômeno. A primeira é socioeconômica. “O Recife está mais distante dos centros de Rio e São Paulo. Perceba que a Bahia, mais próxima, divulga sua música com mais eficiência. A segunda razão é estética, formal. O frevo, vindo das marchas, é mais masculino. O samba é mais feminino”, diz ele, com relação à malemolência rítmica. Em sua escala de importância estariam o samba, o baião e o frevo como ritmos mais abrangentes no País.

Depois de tantos anos de carreira em defesa do frevo, iniciada como aluno de Ariano Suassuna e seu Movimento Armorial, Nóbrega responde se suas falas sobre a supremacia do samba perante todos os ritmos brasileiros não têm causado ciúme em seus conterrâneos. Ele sorri primeiro, e depois diz: “De forma alguma. Meu sentimento é o de que não temos de ter essas fronteiras. Falo pelo Brasil, é por ele que torcemos. Algumas pessoas dizem que o Brasil é um país multicultural. Bobagem isso. Seria assim se tivéssemos aqui a música do Japão, a música da Indonésia, da Rússia. Mas não, somos o frevo, o samba, o maracatu, o baião. Somos dialetos de um mesmo idioma”.

Serviço

ANTONIO NÓBREGA

Sesc Pinheiros. Teatro Paulo Autran. Rua Paes Leme, 195, 3095-9400. 6ª e sáb., às 21 h; dom., às 18 h. R$ 7,50. Até 4/9.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.