O jornalista e escritor Manoel Carlos Karam, morto no final de 2007, certamente se emocionaria se estivesse vivo – talvez em Alhures do Sul se emocione. Nos últimos dias de setembro a Kafka Edições publicou numa batelada três livros seus – o que não deixa de ser um fenômeno para qualquer escritor, vivo ou morto.

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Karam, como muitos outros curitibanos da gema, na realidade é catarinense. No caso, Rio do Sul, onde nasceu em 1947. Mas virou curitibano por adoção, persistência, insistência e vivência de 1966 até a morte aos 60 anos na capital paranaense, onde trabalhou nos jornais O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná além de, eventualmente, em campanhas políticas.

Karam e suas inseparáveis barba espessa e bolsa a tiracolo era mais um personagem da cidade, típico daqueles anos 70, atravessando os anos. Acabou virando tipo do cartunista Dante Mendonça, mas também escritor meio experimental meio não.

A porta de entrada de Karam na literatura foi o teatro. Nos anos 70 escreveu e dirigiu cerca de duas dezenas de peças, além de produzir crônicas. Até morrer publicou sete livros de ficção – o primeiro Fontes Murmurantes em 1985 e o último Sujeito Oculto em 2004.

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Em 2008 a Kafka Edições publicou o póstumo Jornal da guerra contra os taedos. A Kafka também de Curitiba é uma empresa cultural que edita livros a partir da captação de recursos através da lei de incentivo municipal, pelo menos a maioria que saiu do prelo.

Livros como estes de Karam e de outros escritores nativos – ou que por aqui se alojaram – como Marcelo Benvenutti, cujo Arquivo Morto é interessante e merecia ser amplamente conhecido e lido, embora este conceito seja meio difuso.

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Retornando a Karam, pode-se especular que se trata de um escritor local que não teve em vida o conforto de ser bem divulgado e lido como todo escritor almeja. Este negócio de ser bem sucedido é sempre complicado porque depende de uma série de fatores que vão do estilo palatável ou não da obra, da empatia do autor, até suas eventuais boas relações sociais.

Claro que tem escritor ruim, publicado, e bons, não; mas o vice também versa. E assim por diante. No caso de Karam o estilo é palatável, mas o diacho para o leitor comum é a fragmentação, além do nonsense presente aqui e ali. É apenas um palpite. Mas falta de reconhecimento não é só o caso dele. Existem outros.

Alguns já foram como Jamil Snege, cuja prosa fluente e agradável, embora conhecida de circulo restrito, não foi tão divulgada como certamente devia e hoje se encontra ainda mais injustamente reclusa em sebos ou memória de leitores com idade superior a quarenta e tantos.

Estes escritores formam uma espécie de contraponto a Dalton Trevisan, Paulo Leminski, Cristovão Tezza e Valêncio Xavier – este com direito a bela edição da prestigiada Companhia das Letras – que tiveram conforme o caso sorte melhor, embora qualquer um dos ainda vivos possa corretamente argumentar que deu duro para ser reconhecido.

A fronteira entre o que se pretende com uma obra e o que conquista com ela no caso de Karam pode ser dimensionada por uma reportagem da Gazeta do Povo há alguns anos, por ocasião do lançamento de um dos livros do autor.

Ele é tratado como a “bola da vez” da literatura nativa. Ou seja, o próximo fenômeno literário da terra. Não foi, no sentido profetizado, mas a vida foi em frente até o dia 1 de dezembro de 2007, quando Karam foi vencido pelo câncer.

E deixou um grupo de pessoas apegadas a seus escritos e são elas que deixam seus livros vivos. Os três livros que saem agora pela Kafka são Fontes Murmurantes, Cebola e O Impostor no Baile de Máscaras, reedições, o primeiro publicado em 1985 pela Marco Zero, editora criada por outro escritor, o amazonense Márcio de Souza.

Os três formam a trilogia Alhures do Sul, localidade imaginária. O título do primeiro, Fontes Murmurantes, é clara referência meio tropicalista, meio surrealista, extraída da letra de Aquarela do Brasil, de Ari Barroso. Quando saiu nos anos 80, o livro agradou – mas não foi um fenômeno. O que também não serve de bússola para coisa alguma.

O fato de a obra de Karam não ter sido divulgada para círculo mais amplo quando o autor ainda era vivo, não quer dizer que não tenha angariado um grupo de leitores reverentes.

Às vezes estes funcionam melhor que uma multidão de efêmeros leitores. Três destes leitores são escritores, e cada um faz a apresentação de um dos livros da trilogia. Sobre Fontes Murmurantes, Marçal Aquino diz que “o humor fino, a ironia implacável e o apreço obsessivo pelo detalhe são as linhas de força dessa literatura dotada de vigorosa originalidade e que escapa a qualquer enquadramento convencional. Karam nunca deu muita bola para a questão dos gêneros, preferindo embaralhá-los em combinações sempre surpreendentes”.

Aquino observa corretamente que o livro pode ser lido como um romance fragmentário e pode ainda ser considerado um longo relato constituído por pequenos contos e aforismos de teor extravagante.

O segundo título da trilogia, seguindo a ordem cronológica original, é O Impostor no Baile de Máscaras de 1992 pela Artes&Ofícios. Sobre ele, comenta o escritor Nelson Oliveira com exacerbada paixão que “a prosa de Karam é um poderoso veículo de abstração, capaz de enlouquecer e erotizar tudo o que toca”.

E, finalmente, o terceiro é Cebola que saiu em 1997 pela FCC Edições (Fundação Catarinense de Cultura) e que, antes disso, abiscoitou o Prêmio Cruz e Souza de 1995.

A observação mais curiosa e menos eloquente das apresentações dos livros da trilogia, e mais de acordo com os textos de Karam, pelo menos é uma tese, é a de Joca Reiners Terron.

Ele conta que certa vez Karam explicou a ele qual a lógica por trás de seus livros. Estavam no quintal da casa de Karam no bairro Bom Retiro em Curitiba e ao redor havia vaga-lumes e Heinekens.

“Creio que estas últimas são o motivo de eu não lembrar quase nada da explicação de Karam”, diz ele. Ou seja, a Heineken devorou a lógica de Karam. Ou a lógica dos livros do Karam se desmanchou no ar.

Não deixa de ser um elogio, melhor que tentar aprisionar algo fragmentário e muitas vezes divertido numa cela de argumento racional. O certo é que, no caso de Karam, qualquer teoria que se esboce, não tem muita importância.

A importância para qualquer autor é que seus livros sejam como malandros em feira do interior: não fiquem aglomerados no fundo de uma gaveta ou numa velha livraria de usados. Que circulem. Quem fica parado é poste. E isto está acontecendo com os livros de Karam através da iniciativa da Kafka Edições e de seus mentores.

O que, na pior das hipóteses, espanta um dos medos dos escritores: o de seus livros sucumbirem ao tempo e à falta de interesse e exposição. Ao contrário da velha teoria, não são apenas livros ruins que desaparecem: muitos ruins sobrevivem e muitos bons são esquecidos.

Nelson Oliveira diz que “tenho medo de que com o passar dos anos, esses livros sejam esquecidos. Vivemos num tempo e num país que tratam muito mal os autores mais interessantes. Principalmente depois que já partiram”.

No caso de Karam, talvez Oliveira esteja equivocado. Os livros dele estão sendo republicados. Em belos trabalhos editoriais. O certo é que em Alhures do Sul, onde Solda jura que Karam está, o cara deve estar feliz.

E ser feliz depois de morto deve ser tão bom quanto em vida. É o que juram os que acreditam em vida depois da morte. No caso, para um escritor, continuar sendo publicado não deixa, também, de ser uma espécie de vida depois da morte. Qualquer que seja o caso, o cara está aí. Na parada.