Se você mora no Paraná há pelo menos três anos, certamente conhece o sul-matogrossense Dary Jr. Ele costumava aparecer engomadinho, envergando terno e gravata no telejornal de maior audiência no Estado. Já compunha, tocava e cantava à frente da banda Lorena foi embora…, que lutava para se firmar no ingrato cenário underground de Curitiba. Se para os outros era um hobby divertido, para Dary virou projeto de vida. No ano passado ele virou a mesa: dissolveu a banda (por falta de empenho), largou o jornalismo, e foi atrás do sonho.
E ele começou a se materializar a partir de um curta-metragem, nascido de uma crônica dele sobre “burocracia romântica”. O texto virou filme, e o filme inspirou o músico a produzir uma trilha sonora original, com canções inéditas. “Como o Lorena não existia mais, o jeito foi pedir socorro à Poléxia (outra corajosa formação da cena musical da cidade). Da fusão nasceu a banda Terminal Guadalupe, que acaba de lançar Burocracia Romântica, o CD.
E é bom que se diga, para os que torcem o nariz para qualquer manifestação que germine na terra das araucárias: o disco é muito bom. Com uma ou outra ressalva, como a mania que Dary tem de clonar o timbre de Renato Russo, o resultado é animador. Renova as esperanças de que, mesmo morando na autofágica Curitiba, é possível criar gemas pop honestas, a um só tempo acessíveis e sofisticadas. E sem vender a alma ao diabo para entrar na trilha da novela das seis…
Já na primeira música – Lorena foi embora…, uma homenagem à antiga banda de Dary -, é possível vislumbrar que o Terminal Guadalupe tem tudo para cair nas graças do público. Uma receita tão simples quanto infalível: baladona com violões e tecladinho meio retrô, letra melancólica, melodia de levar às lágrimas, tudo isso sustentado por um refrão grudento e poderoso. Se Dary impostasse menos a voz ficaria ainda melhor.
Outra bola dentro do CD é a faixa-título: batida hipnótica, clima sufocante – destacado pelos efeitos na voz – letra e melodia inspiradas, enriquecidas pelo solo de guitarra de Rodrigo Lemos. Piano e violões remetem ao britpop moderno. Talvez a melhor faixa do disco.
O Tempo Que Nos Enamora, título extraído do poema A Torre mais Alta, de Rimbaud, é nebulosa, com bela linha de baixo de Raphael Santos e aconchegantes camadas de teclados. Dary Jr. a descreve como psicodelia -new age – indie, assumindo influências de Love, Grandaddy e Flaming Lips. Mas a música também traz vestígios da Legião Urbana mais etérea, como em Índios.
Apegado a melodias e climas, o músico arriscou-se também por praias inusitadas, como no funk 70 Alarme Falso, com letra citando Sartre, arranjo “alegrinho” e voz soando como Arrigo Barnabé. Favas Contadas é outro campo minado, um reggae emepebístico de acampamento, com assovio e tudo. O teclado a la Flaming Lips “briga” um pouco com a música, mas no final o duelo jazzy baixo x bateria surpreende.
Surpresa
Mas surpresa mesmo reserva a faixa Remanescentes, um hard core com backings ao estilo da Plebe Rube ou Ira!, que deságua num inverossímil baião, com direito ao acordeon “arretado” de Mário Lasseda. “É uma provocação inspirada no Zé Ramalho”, revela Dary.
Da antiga banda, o Terminal resgatou Fugaz – mais experimental, com berimbau e vibrafone, temperada pelos suaves vocalizes da jornalista Malu Mazza – e Degraus, que se transformou num tema de teclado curto e grandiloqüente, composto e tocado pelo guitarrista Rodrigo Lemos. A canção que encerra o disco, Como se Fosse a Primavera, vai dar o que falar: é uma balada ritmada, que vai num crescendo, sustentada pela tecladeira de Eduardo Cirino e pela bateria imponente de Juninho Jr. O problema é que aqui Dary incorpora Renato Russo descaradamente. A letra também parece psicografada por Marcelo Costa, tamanha a semelhança com a produção do líder da Legião. O vocalista alega que não foi proposital, mas não se esquiva da comparação: “Aprovei o resultado. Sempre gostei de Legião, e não vou negar nunca”. Mas não precisava cantar tão igual…
Feitos esses descontos, Burocracia Romântica é um disco agradável de ouvir, bem feito e bem produzido. Dary Jr. sabe disso, e tem peregrinado pelas gravadoras com o seu “filhote” debaixo do braço. Se ainda existir vida inteligente no mercado fonográfico, ele não vai precisar andar muito.
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O CD Burocracia Romântica está à venda por 15 reais no site www.terminalguadalupe.net.