Amizade, viagens e vinhos

São Paulo – Em Sideways fala-se muito em vinho. Bebe-se muito, aliás. Talvez por isso, no Brasil, o filme de Alexander Payne (o mesmo de As Confissões de Schimdt) tenha recebido o subtítulo de Entre umas e outras. Não fica mal, mesmo porque entre uma e outra degustação etílica na região vinícola da Califórnia, os amigos Miles (Paul Giamati) e Jack (Thomas Haden Church) falam e fazem muita coisa. Os dois estão passando uma semana juntos porque Jack vai se casar no sábado. Resolvem farrear, numa espécie de prolongada despedida de solteiro. Miles é um escritor inédito, tentando publicar um volumoso romance que ninguém quer ler. Jack é um ator secundário em filmecos de televisão e comerciais. Jack é o maior galinha. Miles é tímido com as mulheres. Aí está: um dos mais antigos truques de roteiro, duas personalidades contrastantes interagindo em uma situação de estrada, quer dizer com cenário mutante. Road movie, filme de estrada, é uma das melhores fórmulas para sucesso garantido.

Só que aqui ela é subvertida. Os nossos dois heróis são mais frágeis do que parecem à primeira vista. Miles é metido a connaisseur de vinhos. Jack é um principiante, bebe qualquer coisa e acha bom. A trip enológica toma outra direção quando os dois se envolvem com duas mulheres, Maya (Virginia Madsen) e Stephanie (Sandra Oh). E, no relacionamento com as mulheres, a verdade de cada um, se o termo cabe, termina aparecendo.

Payne se mostra diferenciado no quesito escolha temática. Aposta mais na complexidade dos personagens, como já havia mostrado em As Confissões de Schmidt, interpretado por um Jack Nicholson certamente em papel inesperado em sua carreira. Em Sideways, Payne escala dois atores pouco conhecidos. Seus personagens enfrentam aquela curva perigosa da vida que anuncia a meia idade, quando a ilusória vontade de potência da juventude já se encontra em crise.

Em alguns momentos, Sideways lembra o clima de uma grande obra-prima do cinema italiano, Il Sorpasso, que aqui ganhou o título de Aquele que sabe viver. No filme de Dino Risi, um introspectivo (e então jovem) Jean-Louis Trintignant contracena com a figura exuberante de Vittorio Gassman. Risi consegue, em filigrana, introduzir naquilo que seria uma comédia um certo mal-estar, que, no final, vai descambar para o drama aberto. Sob a figura envolvente de Bruno Cortana, interpretada por Gassman, reside uma personalidade frágil. E essa fraqueza arrastará o jovem Trintignant.

Il Sorpasso é uma obra-prima em seu gênero. Sideways é apenas um bom filme. Não se sabe se Payne conhece o trabalho de Risi ou se nele se inspira. Mas, no cinema, as boas coisas ficam no ar. Grandes filmes deixam rastros, dialogam com outros que são feitos depois deles e criam uma zona de influência invisível, porém real. De tal forma que acabam produzindo efeitos mesmo em quem os conhece apenas de segunda ou terceira mão.

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