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Alice Caymmi se aproxima da linguagem do pop

Num café desses de franquia, na zona oeste de São Paulo, Alice Caymmi e sua equipe (mais duas pessoas) se encaixotam em uma mesinha pequena, para quatro pessoas, colada à fachada de vidro. Há uma trilha sonora involuntária criada a partir do rádio ou playlist escolhida para criar um ambiente no espaço localizado na Avenida Heitor Penteado, naquele sábado pela manhã.

“Welcome to the Hotel California / Such a lovely place / Such a lovely place / Such a lovely face”, a voz de Don Henley, do Eagles, em Hotel Califórnia, ecoa pelo espaço vazio enquanto reportagem e Alice iniciam a conversa sobre o terceiro álbum da carioca, cujo título traz apenas seu primeiro nome – sem o sobrenome famoso -, lançado pela Universal Music na próxima sexta, 19.

“Tudo começa na busca por um parceiro para ser meu produtor, como o Diogo Strausz em Rainha dos Raios”, explica, ao citar o produtor do segundo disco dela, de 2014. “E foi uma busca grande. Eu trabalho com encontros, em duplas, com parcerias. Foi quando eu achei a Bárbara Ohana.”

Bárbara é cantora – tem um disco (Dreamers, de 2015) e um EP (Your Armies, com uma música inédita e três remixes, lançado no ano passado) -, mas queria produzir um álbum de outra pessoa. Alice chamou-a para um encontro na sua casa. Bárbara vinha de experimentos com sintetizadores, um indie sintetizado pronto para as pistas. Em meia hora de papo, Alice perguntou: “Quer produzir meu disco?”. Ouviu uma resposta positiva e assim, no pá pum, encontrou a parceria que procurava para investigar do que se trataria a sua nova persona musical. “Tenho a minha personalidade, mas preciso criar um novo personagem para cada disco e essa pessoa (o produtor) me dá novos elementos para trabalhar, seja da personalidade dela, de sentimentos e de material psíquico para essa nova criação. É sempre o resultado dessa troca.”

Ao longo dos 40 minutos de papo – acompanhados por uma seleção de músicas das mais curiosas – percebe-se uma recorrência no discurso de Alice Caymmi: “Faz sentido”, dizia ela, com frequência. “Sentido”, em si, foi citada 15 vezes durante a entrevista. Afinal, Alice, o disco, é isso: é fazer sentido aquilo que é Alice, a Caymmi, hoje.

É a partir dessa intenção que nasce Alice, um álbum cuja primeira brasa veio do desejo de cantar algo mais romântico, “mas em todos os sentidos”, ela completa. “Que também tivesse o sentido duro e difícil do romance. Uma imagem mais densa do romantismo”, explica. A persona de Alice, o disco, está já na capa – e todo o sentido (olha só, a expressão pega, mesmo) do álbum já é escancarado ali. Há um coração em néon: “Falei para tentarmos aquele coração.

Colocamos e, pronto: fez sentido”. A capa exibe o “Alice”, também título do disco, a brilhar e enquanto o “Caymmi” é um letreiro apagado: “Nem me pergunte. Fez sentido”. Na imagem escolhida, Alice é uma noiva, uma imagem puritana, saindo d’água, amarrada no estilo japonês shibari, que também é usado para a prática sexual. Tem o puro e o profano, tudo ali, numa imagem.

Foi a vez de Bono e seu U2 ecoarem no café. “With or without you / With or without you / I can’t live / With or without you”, da música do disco The Joshua Tree, de 1987.

O romantismo de Alice Caymmi não é raso no álbum, um trabalho também que a desconecta estética e tematicamente do estrondoso Rainha dos Raios. “Tinha muito do outro disco que, hoje, me suprimia”, ela explica. Era uma claustrofobia violenta, conta a artista. “Comecei a tirar tudo, ueaaaah!”, ela diz, agitando as mãos. “O que era libertador para mim em 2014, não era mais esses anos depois. Então, era uma violência, sabe? Então, fui me despindo, tirando, mesmo. Foi um processo tão doloroso que até o tom da minha voz mudou”, conta. Alice, em Alice, canta até um tom e meio acima do que em Rainha dos Raios. A tendência entre 25 e 30 anos é ocorrer o oposto. “Foi estranho”, ela diz. Mas fez sentido.

Alice, o disco, é mais dramático e rasgado, como uma ferida aberta, exposta. A começar por Spiritual, a canção que abre o álbum, cujo título deriva da fonte da qual a cantora bebeu, um gênero nascido nos campos norte-americanos, entoados por escravos, que foi transformado em trilha para o processo de libertação dos negros no país e chegou às igrejas. A Spiritual de Alice tem uma ligação diretamente com o gaslighting, uma forma de abuso psicológico, sofrido por ela e do qual ela também se libertou. A personagem do disco vem dessa espécie de transformação da passiva Ofélia, personagem de William Shakespeare, em uma figura que se reergue, renovada. Forte. Por isso a imagem da personagem se levantando das águas, do afogamento, na capa do disco.

“Quando alguém fica dizendo que você é louca… Isso é criminoso”, conta.

Com Bárbara Ohana, Alice passou a estudar o pop. “Mas, em vez de ir para um Ed Sheeran, eu ia para o (rapper) Kendrick Lamar ou Anti, aquele disco da Rihanna”, relembra. Ela, que vem da escala musical árabe, passou a utilizar a mais popular escala pentatônica. Para as participações do disco, convocou Pabllo Vittar e Rincon Sapiência cantam Eu te Avisei e Inimigos, respectivamente. Ana Carolina assina com Alice a faixa Inocente, já lançada.

Os fãs indies-cabeça torceram o nariz para as participações. “É a primeira vez que vivo isso de existir uma expectativa para um disco”, ela diz. “A linguagem pop não é uma lepra, não é uma doença. É uma linguagem. As pessoas já estão dizendo que estou me perdendo. Do quê? Estou cantando samba? Não estou cantando alguma coisa da minha família, blá-blá-blá, essa história toda. Do que vou me perder? Tenho vontade de dizer: ‘Gente, vocês nem ouviram o disco ainda?’ E se fosse uma ópera?”, ela diz. Na pausa, é possível discernir Spending My Time do duo de pop-rock Roxette. “Que preguiça, sabe?”, conclui. Resta a música ambiente, adocicada e sofrida: “I stare at the wall / Hoping that you think of me too / I’m spending my time”. Por que citar a música aqui? Sei lá. Fez sentido.

Alice Caymmi

Alice

Universal Music; R$ 19,90 e streaming

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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