Algumas notas à margem de livros & autores

D_6_4160706.jpg1

Há cartas que, extraviadas, jamais serão lidas. Mas a famosa epístola de Paul Guth, intitulada ?Carta aberta aos futuros analfabetos?, jamais chegará a ser lida pelos seus destinatários. Por motivos óbvios, naturalmente.

2

Afirma Afrânio Peixoto, autor de mais de uma centena de livros, entre romances, crítica e ensaio (lembro apenas três obras suas, Maria Bonita e Bugrinha, romances, e Camões e o Brasil, ensaio), que só a história do passado explica o presente. Tem razão, em parte. Mas ela faz mais do que isso: transforma-se numa espécie de álibi para os erros e os crimes do presente.

3

Numa entrevista recente, José (de Souza) Saramago, o primeiro Nobel da nossa língua, com a sua ironia típica, quase proverbial, tinha oportunidade de afirmar: ?Eu não sou pessimista, o mundo é que está péssimo?. Eu, do fundo do poço da minha insignificância pensante, prefiro dizer: sou otimista pois a vida é ótima, e tenho esperança de que as coisas, o mundo e os homens, vão melhorar. Quando? Não sei.

4

A temática/problemática da morte, simultaneamente fascinante e terrível, tem sido abordada, ao longo dos tempos, por grandes ficcionistas. Mas não há dúvida que três nomes se destacam na abordagem e na exegese desse tema/problema fundamental: Lev Tolstoi, Franz Kafka e Roger Matin du Gard. Tolstoi, no seu genial A morte de Ivan Ilitch. Kafka, no admirável A metamorfose. E du Gard num capítulo soberbo desse ?roman fleuve? que é Os irmãos Thibault, intitulado A morte do pai. Temos aí três livros de leitura obrigatória. Seu desconhecimento nos torna mais pobres, em termos não apenas intelectuais, mas também emocionais.

5

As palavras mais amargas e contundentes contra qualquer país são geralmente ditas ou proferidas por nacionais. Ficarei apenas com dois exemplos, que me parecem emblemáticos: Tácito, o grande historiador romano, e Jefferson, o notável estadista estadunidense. perscrutar frase terrível, essa. E o que diz um dos ?pais da pátria? norte-americanos, Jefferson? Isto: ?Tremo pela minha pátria quando penso que Deus é justo?. Perto desses dois nomes, Eça de Queiroz e Ruy Barbosa são ?fichinhas?…

6

Certo, certíssimo, Ortega y Gasset: afirmar-se alguém de esquerda ou de direita constitui uma forma de ser imbecil (ou imbécil, como se diz em espanhol), configurando uma espécie de himeplegia moral. Mas dizer-se de centro talvez seja pior: acrescenta à doença a hipocrisia.

7

Lembramos sempre os grandes feitos, mas lemos e por isso temos sempre as grandes obras. Não é por outra razão que estão mais vivos Homero e Virgílio, Dante e Shakespeare, Camões e Cervantes, do que Alexandre, Júlio César ou Napoleão.

8

Um aforismo do imenso Montaigne: ?Quem nunca viu um rio, quando o vê pela primeira vez, pensa que é o mar?. Esse espécime aforístico do mestre dos ?Essais? absolve quantos aforismos medíocres, inclusive meus?

9

Antes de ler aquela que me parece hoje a obra capital de Thomas Mann (que eu por mais de uma vez comecei a ler, sem concluir a leitura, após o primeiro dos quatro volumes), José e seus irmãos, considerava o autor apenas um dos maiores romancistas de todos os tempos, depois de Tolstoi e Dostoiewski, Joyce e Proust, Balzac e Dickens, Cervantes e Flaubert. Após ler, na íntegra, a tetratologia manniana, a minha perspectiva axiológica mudou. Para mim, com José e seus irmãos, o genial Mann (de ascendência, diga-se de passagem, luso-brasileira) é, de fato e de direito, o ?primus inter pares? da arte romanesca.

10

Coisa curiosa, a mão do poeta. Há nela uma capacidade, por assim dizer demiúrgica (quando o poeta se chama Homero ou Virgílio, Dante ou Camões, Tasso ou Shakespeare, Goethe ou Baudelaire, Pessoa ou Drummond), semelhante à que aconteceu no Gênesis. Ela é capaz de fazer surgir, no espaço branco da página deserta, um universo ? o poema. Como se exercitasse aquele mesmo ?fiat? divino, genesíaco. Mas, quantas vezes, após a criação desse pequeno universo feito de verbo e assombro, o poema, o criador constata, perplexo, que esse ?mundo?, ao contrário do ?outro?, não é bom. E a mesma mão que deu vida ao poema é a mesma que o rasga e o lança nas trevas exteriores, a lata de lixo. Não temos aí a pré-figuração perfeita de uma espécie de Apocalipse em miniatura, quase microscópico?

11

Um crítico ilustre, cujo nome me foge agora, chegou a considerar o sanatório que Thomas Mann coloca no alto da sua admirável (melhor dizendo, genial) Montanha Mágica, uma espécie de sucursal do inferno dantesco. Não é. Talvez seja, antes, a representação simbólica, metafórica, de uma Europa doente, nos anos amargos que precedem a terrível Primeira Guerra Mundial. Ou uma espécie de purgatório onde aqueles ?filhos enfermiços da vida?, tuberculosos que apodrecem aos poucos, enfrentam um processo radical de purificação, sublimação, catarse. O sanatório, que o autor dos também admiráveis Os Buddenbrooks e Doutor Fausto, rotula eufemisticamente de hotel, talvez seja apenas o simulacro de uma estação de trânsito para a transcendência metafísica. Para o Absoluto. O arquiteto excelso, como o Solness de Ibsen, sabia muito bem o que estava construindo.

12

Todo o escritor autêntico tem que ser, necessariamente, cartesiano. Parafraseando o autor do Discurso sobre o método, ele pode afirmar sempre, com a consciência plena de que está dizendo a verdade, apenas a verdade: escrevo, logo existo. Isso vale sobretudo para o poeta, essa perpétua usina de sentimentos e caldeirão de emoções, com a capacidade sutil de verbalizar uns e outras.

13

Via de regra (data vênia a Carlos Lacerda, que abominava cordialmente a expressão), a crítica costuma subestimar o gênero policial. Penso que há um pouco de injustiça nessa subestimação crônica. Ela vale para centenas de novelistas ou romancistas que exercitam o gênero. Mas não vale certamente para nomes como Arthur Connan Doyle, Dashiel Hammett, Raymond Chandler, Rex Stout, Bentley, Simenon, Patrícia Highsmith ou P. D. James. Isso para citar apenas uma escassa dezena de escritores autênticos que prescindem do adjetivo maldito. Admito que haja muito lixo e detritos sub-literários na maioria dos livros policialescos. Mas nas obras dos nomes citados (e eu só citei uma plêiade restrita) é possível descobrir pepitas sem conta. Falo, ou melhor, escrevo com a experiência de quem leu a grande maioria dos seus romances, que são algo mais do que aquele ?entertainment? com que Graham Greene rotulou alguns dos seus livros menos ?sérios?.

14

A ?estirpe de Caim?, que Baudelaire menciona num dos seus poemas de Les fleurs du mal e que Hermann Hesse retoma no romance Demian, está espalhada por toda a terra. Seus membros trazem tatuada na testa, embora a tinta seja invisível, o estigma da besta apocalíptica.

Mas atenção: essa estirpe sinistra não é majoritária. Longe disso. A descendência (espiritual, evidentemente) de Abel é certamente mais vasta. Só que se trata de maioria silenciosa. E nós bem sabemos que, dentro de uma sala de cinema com mil espectadores, é mais audível o grito de um só deles do que o silêncio de 999…Um acacianismo transparente? Não, uma verdade concreta.

João Manoel Simões é membro da APL, do CLP, do IHGP, do CEB, da UBE, etc. É autor de cerca de 50 livros (de poesia, crítica, ensaio, crônica, pensamentos e contos).

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo