Claro que a fama mundial veio com a ficção – em especial com O Nome da Rosa, que se tornou filme de sucesso sob a direção de Jean-Jacques Annaud, tendo Sean Connery como um arguto monge investigador. Mas, nesse momento de perda, é preciso lembrar que, antes disso, a obra de Umberto Eco é a de um grande medievalista e semiólogo.
Em 1962, Eco escreveu Obra Aberta, livro que teria grande repercussão em todo o mundo culto. Sua tese era de que, se toda a obra de arte contém certo grau de polissemia (múltiplos significados), a obra contemporânea buscar indeterminação ainda maior. Sendo, assim, “aberta” a várias interpretações. O paradigma, em literatura, seria a obra de James Joyce, Ulisses e, em especial, Finnegan’s Wake.
Como todo livro muito influente, e às vezes mal lido, também Obra Aberta provocou equívocos. O mais frequente: achar que, já que as obras eram abertas, qualquer interpretação seria possível. Contra o vale-tudo dessa ideia, o próprio Eco escreveu mais tarde Os Limites da Interpretação (1990).
Mas o fato é que Eco era um raro dublê de acadêmico interessado no mundo extra-universitário. Assim, alternava obras densamente teóricas, como A Estrutura Ausente (1968), e outras em que se debruçava sobre fatos da sociedade que lhe pareciam merecedores de atenção, como fez em seus Diários Mínimos. Podia ser didático como em Como se Faz uma Tese (1985) e erudito como em Arte e Beleza na Estética Medieval (1987). Era, sobretudo, bem-humorado, não se levava tão a sério e escrevia com clareza brutal. Manteve durante muitos anos uma badalada coluna na revista semanal L’Espresso, que era uma delícia de ler.
E, dessa forma, parecia mais ou menos inevitável que um dia fosse tentado pela ficção. O que ninguém poderia prever, e certamente ele menos ainda, é que faria o sucesso global com O Nome da Rosa.
Entenda-se. O livro, apesar da trama policial, nada tem de fácil e evidente. À maneira de história de Sherlock Holmes, um monge, William de Baskerville, é convocado para desvendar uma série de crimes num mosteiro medieval. Como móvel do crime, um suposto texto de Aristóteles sobre o riso. E, entre os personagens soturnos, um monge cego, chamado de Jorge. Alusão clara a Jorge Luis Borges, o escritor argentino fanático por labirintos, bibliotecas e tramas intrincadas.
Além disso, embutida na trama, todo o saber do medievalista sobre aquele mundo que descrevia. E trechos inteiros em latim…e sem tradução. Era desafiador. Mas, por uma vez, e talvez cansado das facilidades, o leitor procurou esse livro que o deixava sem rumo em muitas passagens, mas era compensador no final. Virou filme, e de muito sucesso também, com a história expurgada de suas passagens mais eruditas.
O fato é que, com O Nome da Rosa, Eco havia inventado uma espécie de suspense erudito. Retoma a narratividade do romance, emprega muitas vezes a fórmula do policial (quem cometeu o crime? Como encontrar o criminoso?), expediente que sempre agradou o público. E, através desse formato, introduzia o leitor a temas que julgava oportunos e interessantes. Além do anátema ao riso de O Nome da Rosa (1980), trabalhou com as teorias conspiratórias em O Pêndulo de Foucault (1988), os paradoxos do tempo em A Ilha do Dia Anterior (1994),o imaginário medieval em Baudolino (2000), a memória e a cultura popular moderna em A Misteriosa Chama da Rainha Loana (2004), as raízes do antissemitismo em O Cemitério de Praga 2011), o jornalismo contemporâneo em O Número Zero (2015).
Sua obra ficcional teve este outro caráter importante para a literatura – o regresso à narratividade. Como estudioso da literatura e semiólogo, Eco havia entendido que, com Finnegan’s Wake, o enigmático romance de Joyce, a vanguarda havia atingido uma fronteira impossível de transpor. O caminho, dali para frente, seria o da volta à narração, ao fascínio intemporal das histórias bem contadas, que reuniam homens em volta das fogueiras para ouvir relatos épicos e fez um sucesso que atravessa séculos com os contos de Sherazade nas Mil e uma Noites.
Com o arsenal teórico acumulado na primeira parte da sua carreira, Eco desenvolveu uma carpintaria sólida para a segunda, sua trajetória de ficcionista. O que escrevia é madeira de lei, feita para durar, e ele não se deprimia com o rebaixamento de nível intelectual do mundo contemporâneo. O negócio era continuar a escrever, dizia. Vai fazer falta. Mas muita falta mesmo.