O violoncelista inglês Steven Isserlis, de 55 anos, toca num lendário Stradivarius de 1726, cedido pela Royal Academy of Music de Londres. O instrumento tem cordas de tripas. Ele usa o arco Tourte, do início do século 19. O pianista norte-americano Robert Levin, de 64 anos, pilota uma réplica feita por Paul McNulty de um fortepiano assinado por Walter & Sohn em 1805, com uma tessitura de cinco oitavas e meia e pedal una corda. Instrumentos ideais para juntos empreenderem a odisseia de registrar em álbum duplo as cinco sonatas de Beethoven, três séries de variações e uma transcrição para cello e piano, do próprio compositor, de sua sonata original para trompa.
O álbum duplo acaba de ser lançado pela Hyperion no mercado internacional. E é um raro círculo virtuoso perfeito. Dois eméritos instrumentistas, um deles, o pianista, especialista reconhecido na música historicamente informada; o outro é um dos mais refinados violoncelistas da atualidade. Ambos pertencem, além disso, à rara tribo dos músicos que pensam criticamente seu ofício (Isserlis escreve regularmente, inclusive ficção; e Levin lançou recentemente sua versão do inacabado Réquiem de Mozart).
Embora realizada em estúdio, a gravação permite que ouçamos a respiração acelerada de Isserlis em alguns momentos, injetando a eletricidade que, em geral, só se vê nas salas de concerto.
No excelente texto do folheto, Steven Isserlis diz que “violinistas e violoncelistas são como cães e gatos – a natureza os condenou a se desafiarem. Discutem sobre todo tipo de coisas”. Os primeiros adoram dizer que têm o dobro das cinco sonatas que Beethoven escreveu para os violoncelistas. “Mas nós, em compensação, temos sonatas características dos três períodos criativos de Beethoven.” E faz, em seguida, uma súmula de seu argumento que serve como guia para ouvirmos estas obras-primas, argumentando que jamais trocaria suas cinco sonatas pelas dez dos violinistas: “Temos duas do primeiro período, uma do período mediano e duas do último período”.
Beleza imaterial
É, de fato, uma viagem extraordinária, diz ainda Isserlis, “em que Beethoven se transforma sob nossos olhos e ouvidos, passando do virtuose confiante a mestre supremo da forma clássica, e depois indo além, explorando misticamente novos universos estranhos de uma beleza imaterial – uma maravilhosa transfiguração”.
Possivelmente, o diferencial mais importante seja o equilíbrio entre a sonoridade do cello e a do fortepiano (quando tocadas em modernos Steinway, o piano costuma dominar a narrativa). Os graves menos potentes equalizam o volume conjunto dos instrumentos; a sonoridade menos brilhante e metálica, quase opaca se a comparamos com um piano moderno, neste caso ajuda, em vez de atrapalhar. Até porque Beethoven foi o primeiro, nestas sonatas, a justapor os dois instrumentos em pé de igualdade. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.