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‘Akira’ faz retrato do Japão do pós-guerra

Em 1957, causou comoção em Tóquio o acender das luzes de um letreiro de néon de mais de duas toneladas. Não foi o primeiro, mas foi o que fez todas as empresas correrem atrás de um. Hoje, as paisagens urbanas com escassez de espaço e excesso de néon são marca registrada dos grandes centros urbanos asiáticos e do imaginário cyberpunk, mas também representam a dominação da cultura consumista imposta pelos EUA no pós-guerra.

Um quarto de século mais tarde, foi lançado o primeiro volume de Akira, mangá seminal de Katsuhiro Otomo que se utilizou desse cenário néon para pavimentar o caminho para outros produtos culturais nipônicos no Ocidente. Finalmente, o Brasil está recebendo uma edição caprichada de Akira, pela JBC.

Publicado em seis volumes entre 1982 e 1990, Akira se passa em 2019, três décadas após a deflagração da 3ª Guerra Mundial e a destruição da antiga capital japonesa. Os Jogos Olímpicos de 2020 estão prestes a ser sediados em uma Neo Tokyo (a vida imita a arte, afinal) reconstruída, temperada por uma juventude promíscua, um cenário político convulsionado e charlatães religiosos à espera de um messias.

O incipit do drama de Otomo é o encontro entre uma gangue de motociclistas liderada por Kaneda e a cobaia de um teste militar secreto do governo: um sujeito com corpo de criança e feições de idoso, que demonstra poderes sobrenaturais. Tetsuo, que costumava ser o mais vulnerável da trupe, colide com o garoto psíquico e leva a pior, o que desperta nele as capacidades telecinéticas.

O primeiro volume, por enquanto o único disponível nas livrarias, concentra-se na evolução dos dons de Tetsuo, seu crescente antagonismo em relação aos antigos amigos e sua escalada de menor infrator a inimigo público número um. Essa transição é muito mais bem desenvolvida no mangá do que no clássico filme em animação de 1988, que resume radicalmente a história, sacrifica a construção das personagens e ignora boa parte das subtramas políticas, além dos três volumes finais.

Akira se passa no futuro, mas como toda obra de sci-fi, é um reflexo de seu próprio tempo. Tetsuo personifica o Japão do pós-guerra e a ameaça nuclear. Suas mutações são uma metáfora dos efeitos da radiação à qual o país foi exposto após a explosão das bombas de Hiroshima e Nagasaki; a rápida evolução de seus poderes, sublinhada em vários momentos, é um paralelo do desenvolvimento econômico galopante pelo qual o Japão passou, indo de uma nação em ruínas para uma potência pujante; a consequente perda da identidade nacional nipônica após esse processo e a imposição da cultura ocidental trazida pela globalização estão expressas na atitude hostil de um irreconhecível Tetsuo para com seus antigos comparsas.

Katsuhiro Otomo não só foi responsável por fincar a bandeira dos mangás e animes em solo ocidental, mas seu cenário futurista de Neo Tokyo, um emaranhado de luzes néon, deu o tom para todo o gênero cyberpunk dali em diante, junto de Blade Runner, lançado no mesmo ano. Basta pensar que Neuromancer, de William Gibson, foi publicado só dois anos depois.

A vinda de Akira para as Américas coincidiu com a quebra do mercado norte-americano de videogames (resumidamente, a Atari afundou-se em dívidas após uma péssima adaptação do E.T., de Steven Spielberg, para os games) e a posterior invasão da japonesa Nintendo a partir de 1985, o que consolidou de vez o intercâmbio cultural que dura até hoje.

Em breve, o leitor brasileiro poderá ler os outros cinco volumes de Akira e explorar por conta própria suas nuances, que não se restringem à política e ao comentário social, mas se expandem para uma dimensão religiosa e filosófica que foi essencial para o amadurecimento dos quadrinhos japoneses.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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