Agnus Dei usa estupro como arma de guerra para discutir o mundo contemporâneo

No ano passado, quando esteve no Brasil para mostrar Gemma Bovary – A Vida Imita a Arte no Festival Varilux, a diretora francesa, nascida em Luxemburgo, Anne Fontaine encontrou-se com o repórter no Rio. E surpresa – falaram em português. Anne maneja muito bem a língua, que fala com sotaque de Portugal. “Aprendi com uma babá portuguesa”, contou. Anne ministrou uma master class. Disse que não era uma atividade nova para ela porque tem ministrado muitas master classes no circuito universitário dos EUA. “Os norte-americanos e japoneses apreciam muito meus filmes, que colocam no nicho de arte”, comentou. Embora estivesse no País para falar de sua livre adaptação do romance famoso de Gustave Flaubert – Madame Bovary -, falou do filme que concluíra e esteve no Festival Varilux deste ano, Agnus Dei.

Dessa vez, veio a atriz Lou de Lâage para promover Agnus Dei. Quem a vê, com seu tipo mignon e delicado, não dá conta da força de sua personagem – Mathilde Beaulieu – no longa de Anne. Agnus Dei passa-se na Polônia, em 1945, após a guerra. A assistente de um posto da Cruz Vermelha é chamada para um atendimento emergencial num convento próximo. Ateia, materialista, em princípio ela nem quer ir. Quando vai depara-se com um quadro dantesco – freiras grávidas, quase parindo; outras, sifilíticas. Um quadro de dor e de fim de mundo. “Deus nos esqueceu”, bradam umas. “Ele testa nossa fé”, dizem outras. A realidade é que o convento foi invadido por soldados, que violentaram as freiras.

O estupro como arma de guerra não é novidade no cinema. Inspirou desde o Vittorio de Sica de Duas Mulheres, que deu a Sophia Loren o prêmio de melhor atriz em Cannes, 1961, e o Oscar no ano seguinte, até o poderoso drama bósnio Brbavica, de Jasmila Zbanic, que ganhou o Urso de Ouro em Berlim, há exatamente dez anos. Anne viu os dois. Sente-se mais próxima do segundo, e não apenas por ter sido realizado por uma mulher. “No meu filme, não mostro a violência do estupro. Interessa-me o depois, o que ocorre com aquelas mulheres. Vai ser um filme bem complexo, abordando desde a fé até a questão contemporânea da posse do seu corpo pela própria mulher”, prometia. Seu filme não decepciona.

Anne estreou em 1993, ganhando de cara o importante Prêmio Jean Vigo com Les Histoires d’Amour Finissent Mal, en Général (Histórias de Amor Quase Sempre Terminam Mal). Foi premiada em Veneza pelo roteiro de Lavagem a Seco, de 1997, e mais recentemente (em 2009) fez sucesso de público e crítica com Coco Antes de Chanel, a versão com Audrey Tautou. Outra promessa de Anne para o repórter – “Trabalhei com atrizes francesas e polonesas (em Agnus Dei). Havia visto Ida (que venceu o Oscar) e me encantei com Agata Kulesza. Ela é magnífica, como você poderá comprovar.” Lou de Lâage também elogiou muito as colegas polonesas. “Filmamos em condições muito duras, porque Anne (a diretora) queria colocar na tela toda a dificuldade da época. Fui a última a chegar ao set, quando as outras, as freiras, estavam integradas. Agata (a madre superiora) nunca parou de me surpreender. Transformava-se diante da câmera, e conseguia repetir a cena de forma sempre convincente. Que técnica! Espero chegar lá (brinca).”

Na trama, inspirada numa história real, Mathilde ainda não é médica, mas estudante – uma estranha nesse ninho. “Me perguntam sempre sobre o embate entre a ética médica e a religiosa, mas tenho a impressão de que o filme não é sobre isso.” O repórter arrisca – todo filme de Anne Fontaine é sempre sobre ‘transgressão’. A atriz concorda – “É isso. Muitas vezes é preciso transgredir a ordem em defesa do humano. Era o que Anne dizia na filmagem. Em plena modernidade, vivemos uma era de trevas. A humanidade torna-se supérflua, e nem nos damos conta disso.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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