A ação de usucapião, “remédio jurídico” para dirimir questões crônicas que se arrastam no tempo, era, até recentemente, associada a bens imóveis, mas, em 2007, o advogado e colecionador paulistano Pedro Mastrobuono resolveu recorrer a ela para garantir a posse de uma obra de arte, um busto relicário paulista em terracota, do século 17, de autoria de frei Agostinho de Jesus, que representa Santa Úrsula. Combatida na época pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a tese de Mastrobuono foi, no entanto, acolhida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que adotou o caso como jurisprudência. Agora, incentivado pelo sucesso, ele luta para reconhecer o direito de propriedade de duas esculturas de madeira de Aleijadinho, ambas atribuídas ao último período de vida do escultor e arquiteto mineiro Antônio Francisco Lisboa, cujo bicentenário é comemorado com o lançamento de dois livros.

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Pertencentes à professora Maria Júlia Barreto da Silveira Arena, que adquiriu as esculturas em cedro nos anos 1970, as imagens entalhadas de São Domingos de Gusmão e de São Francisco de Paula fazem parte do patrimônio da família Arena há mais de 40 anos e sua posse sempre foi mansa e pacífica, que, no jargão jurídico, equivale a dizer, jamais foi contestada por quem quer que seja. Não é só. A autora da ação exerce sua posse com ‘animus domini’. Em outras palavras: emprestou essas obras algumas vezes para mostras culturais e exposições, devendo ceder em comodato uma delas, a de São Francisco de Paula, segundo garante seu filho, o arquiteto Luiz Arena.

“Pensando no bicentenário de Aleijadinho, essa cessão ao Museu de Arte Sacra é uma homenagem ao escultor, mas, para ser publicamente exposta, precisamos proteger a propriedade da obra, e a ação de usucapião me parece o instrumento adequado”, justifica Luiz Arena. Em tempos de caça às obras de arte sacra movida pelo Ministério Público de Minas Gerais, essa ação também questiona o procedimento da promotoria mineira, que recentemente apreendeu um busto de São João Boaventura, obra de Aleijadinho esculpida entre 1791 e 1812, que pertencia ao colecionador João Marino, morto em 1997, formador de um maiores acervos de arte sacra do Brasil. Avaliada em R$ 1,2 milhão, a peça foi exposta em mostras estrangeiras e, mesmo sob protestos dos herdeiros da família Marino, ela foi encaminhada, por ordem judicial, ao Museu Aleijadinho, em Ouro Preto.

“O promotor mineiro que mandou apreender essas obras invocou uma lei do Primeiro Império, datada de 1830, segundo a qual a propriedade da Igreja fazia parte do patrimônio da monarquia, tese juridicamente insustentável com o advento da República, quando a Igreja Católica passou a ser considerada mera pessoa jurídica de direito privado”, argumenta Mastrobuono. Para ele, trata-se, antes de tudo, de uma “agressão ao Estado de Direito” deflagrada pelo Ministério Público de Minas Gerais, da mesma natureza do polêmico decreto 8.124, promulgado em outubro de 2013 e que permite ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) declarar de interesse público bens que atualmente fazem parte de acervos de museus e de coleções particulares. Essas obras de arte passariam a ser monitoradas pelo Ibram e não poderiam ser vendidas sem aprovação governamental.

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“A ação de usucapião pode devolver a confiabilidade e segurança ao segmento de arte sacra no País, pois a promotoria mineira já provocou uma forte redução no grau de confiança entre colecionadores, antiquários e marchands”, diz Mastrobuono, lembrando que a Igreja, ao contrário do que acontecia nos tempos do imperador, “não precisa mais de autorização para vender seus bens, como garante a Constituição de 1891”.

A forma inaudita como foi conduzia a primeira ação de usucapião de uma obra de arte, em 2007, fez o advogado Luiz Périssé se associar ao escritório de Mastrobuono. Obras de arte como as esculturas de Aleijadinho, que chegam a valer quase R$ 5 milhões, em alguns casos, obrigam seus proprietários a contratos milionários de seguros para ser publicamente expostas, além de uma série de documentos inerentes ao transporte e manuseio, valores astronômicos para que esse patrimônio privado sofra a agressão de um órgão público.

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O artigo 1.261 do novo Código Civil diz que a posse de bem móvel por mais de cinco anos produz usucapião, independentemente de título ou boa-fé. Essa foi a forma que tanto Périssé como Mastrobuono encontraram para evitar que, no futuro, se repita o caso João Marino. Como no ordenamento jurídico do Brasil presume-se a propriedade com base nesse Código, a ação de usucapião tem efeito declaratório, garantindo ao proprietário o domínio do bem móvel. “Não vou entrar no mérito das ações dos promotores mineiros, até porque não conheço bem a forma como as obras sacras foram resgatadas pelo Ministério Público, mas os colecionadores têm o direito de defender seu patrimônio”, observa Périssé.

“O Ministério Público mineiro não pode ignorar o regime republicano vigente, como se Minas Gerais não fosse um Estado integrante da República Federativa”, diz Mastrobuono, denunciando o linchamento moral do qual têm sido vítimas colecionadores. “Nomes como o da família de João Marino têm sido atingidos, logo ele, ligado à consolidação do Museu de Arte Sacra, cuja contribuição, aliás, foi reconhecida pelo próprio governo federal.”