Adriana Calcanhotto, hoje com 49 anos, cresceu ouvindo Lupicínio Rodrigues. Escutava suas músicas vindo dos rádios da vizinhança no bairro do Cristal, em Porto Alegre, onde passou a maior parte da infância. Quando cantava em barzinhos na noite, entre 1984 e 1985, a cantora conheceu pessoas que conviveram com o compositor conterrâneo e ficou sabendo por elas suas histórias. Era como se ele tivesse recém-saído do recinto, Adriana descreve em seu texto sobre o projeto. “Quando a gente nasce no Rio Grande do Sul, primeiro você aprende essas músicas, depois você aprende a falar”, graceja ela.
“Para mim, Lupicínio sempre existiu, portanto, não tive com ele um impacto como quando ouvi João Gilberto, Caetano. Só fui investigar minha relação com ele em O Micróbio do Samba (disco da cantora de 2011), que fui me dar conta da influência, era forte, mas não era de impacto”, conta em entrevista à reportagem, no Rio, onde a artista organizou uma exibição de seu novo DVD “Loucura”, em uma sala de cinema na cidade.
Para ela, Lupicínio não ficou datado. “Tudo o que ele está dizendo não tem nada fora de moda.” Outros artistas contemporâneos, vez por outra, também fazem sua incursão pelo universo dele, a exemplo de Arnaldo Antunes, Elza Soares, Arrigo Barnabé e Gal Costa, para citar alguns casos mais recentes – e acabam ajudando também a perpetuar a obra dele.
O convite para fazer uma apresentação com o repertório de Lupicínio Rodrigues, em Porto Alegre, partiu do projeto Unimúsica, da UFRGS, alguns meses antes de seu show. Um espetáculo único em homenagem ao centenário de Lupicínio Rodrigues, completado em 16 de setembro de 2014, celebrado no ano passado. Apesar da familiaridade com o repertório, Adriana conta que se somavam responsabilidades para ela, como o fato de o show ser em Porto Alegre e naquele lugar onde passou a infância, já que a mãe era fundadora e diretora do grupo de dança da universidade que lá se apresentava. “Mas sem esse frio na barriga prefiro não fazer.”
Para montar o repertório, a solução que Adriana encontrou, diante desse vasto conhecimento de causa, foi ficar com “as coisas que saiam mais espontaneamente”.
Para tanto, voltou a ouvir antigos discos, desta vez, focada nesse projeto. E teve boas descobertas: “Cenário de Mangueira” (que é gravada aqui numa levada funk) e “Quindim de Mulher” (que Lupicínio compôs em 25 minutos no programa de TV de Flávio Cavalcanti), que foram para os extras. Nesse norte que seguiu, “Torre de Babel”, que ela considera um dos momentos geniais de Lupicínio, por exemplo, ficou de fora por uma questão de falta de adaptação a ela.
No total, o DVD reúne 17 faixas, incluindo “Felicidade”, “Nunca”, “Volta” e “Vingança”, além de filme dirigido por Gabriela Gastal. Gremista que é, o hino de seu time do coração assinado por Lupicínio estava no topo de suas escolhas. Adriana, então, consultou o também gaúcho, porém Colorado, Arthur Nestrovski, violonista virtuoso, que fez participação especial no projeto, se ele tocaria o hino, ao que ela prontamente ouviu como resposta: “Claro… que não”. Mas ele se prontificou a ensinar os outros músicos a tocar. No final das contas, surpreendeu a todos ao tocar junto o hino do rival, mas vestindo, claro, o agasalho de seu time.
Aliás, no show, Adriana vem cercada de grandes músicos, como o já citado Nestrovski, Dadi Carvalho (violão), Cézar Mendes (violão), Jessé Sadoc (trompete e flugelhorn), Alberto Continentino (baixo), além de outros convidados, como Arthur de Faria (acordeom) e Cid Campos (violão) – este último, filho do poeta Augusto de Campos, um grande admirador da obra de Lupicínio, sentimento que Cid herdou por tabela. Eles atenderam ao chamado dela e se reuniram naquele palco pela primeira vez juntos apenas um dia antes do ensaio. A sintonia deles foi testada praticamente no ato – o que deu certo. Como bem observa Domenico Lancellotti no documentário, sem percussão, só com instrumentos de corda e sopro, criou-se um espaço naquele palco. E a cantora agregou espontaneamente uma movimentação cênica. E diante da intensidade de sua interpretação, sobretudo no rosto e no olhar, as câmeras miram-na quase sempre em ângulos fechados em sua face.
Mas Adriana não pretende apresentar novamente esse projeto no palco. “Acho que foi um momento de uma noite, de uma noite que aconteceu, entre palco, plateia e filme, coxia, isso tudo dá uma liga muito interessante. É alguma coisa que acontece ou não.” Unir esses músicos também seria inviável. “O bacana foi ter registrado uma coisa tão viva, era para ser um registro daquilo”, explica Adriana, que, por ora, está voltada à divulgação desse projeto, sem novo disco ou livro à vista, por enquanto. Agora, está numa fase mais orgânica, de ler e compor – e já começa a pensar na apresentação que fará em dezembro em Coimbra, assim como fez em 2014 com o show em tributo a Lupicínio Rodrigues. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.