Tem a literatura que importuna e tem a literatura que só alisa. Tem o escritor que anda sozinho e o escritor que se sustenta em compadrio, com livros carimbados pela crítica oficial e apoiados em prêmios corporativos. Tem a ficção que descarna a hipocrisia do tecido social e a ficção que satisfaz espíritos pequeno-burgueses (“Você viu como ele escreve bem?”; ora, que diabos quer dizer “escrever bem” em literatura?; é coisa tipo concurso de miss?).
Ademir Assunção caminha sozinho e importuna. Daí porque quase passou batido no fim do ano o lançamento do seu novo livro Adorável Criatura Frankenstein (Ateliê Editorial -226 págs. – R$ 27). Ficção irrequieta, sarcástica, erguida sobre signos conhecidos da contemporaneidade – lojas Arapuã, Xuxa, Pernalonga, hotel Della Volpe, Washington Olivetto, bistecas do Sujinho e motel Astúrias -, o livro tem como protagonistas personagens-pronomes: Eu, Nós, Tu, Ela, Vós, Você. E, claro, a terceira e insondável pessoa do singular, Ele (que virá a ser, ao mesmo tempo, o dono da bola e do campinho).
Nascido em Araraquara (SP) e tendo vivido durante dez anos em Londrina, Ademir Assunção é poeta, jornalista e escritor. É também um dos editores da revista Coyote. Publicou – sempre com invejável senso de independência – os livros LSD Nô (1994), A Máquina Peluda (1997), Cinemitologias (1998) e Zona Branca (2001).
Adorável Criatura Frankenstein esculacha os ritos de legitimação de ídolos, marqueteiros, intelectuais e modelos-atrizes-apresentadoras do circo midiático brasileiro. Uma passagem memorável é quando o protagonista, Eu, é entrevistado no programa de televisão Letra Viva, cercado por editores de entretenimento de diversos periódicos, que se elogiam mutuamente e ao entrevistado por qualquer pigarro ou tossida.
Eu é um personagem enternecido, indignado, de um desnorteamento que beira a insanidade. E o autor o estima, lhe dá autoridade. O crítico Nelson de Oliveira discorda dessa avaliação, na orelha do livro: crê que os pronomes de Assunção são “entidades puramente intelectuais, semióticas, sem consistência física”, criaturas de um “vasto hipertexto coletivo”. Leituras diferentes, mas não divergentes.
Carne e osso
Os pronomes-gente de Assunção são de carne & osso & batimentos cardíacos. O livro tem momentos de alta dramaticidade e ritmo visual alucinante. Um exemplo: a “cena” em que o autor descreve como o lúmpen Eles (todos os que estão ali fora, do outro lado do Insulfilm do carro, são “Eles”) rouba uma Playboy, mata o dono da banca de jornais com um estilete e se enfia num banheiro público para folhear a revista, com as mãos ensangüentadas.
Além do mais, o livro tem uma ironia que beira o humor negro, cheio de escracho. É risível a história do sujeito globalizado no seu Hyundai que, no meio de um assalto, resolve atender o outro celular no bolso e leva um balaço no coco. A Criatura Frankenstein é barra-pesada, suja, pornográfica, assustadoramente realista. Como o monstro de Mary Shelley ou os replicantes de Blade Runner, ela quer se defrontar com o criador para saber quem autorizou tanto desatino. Talvez o encontre, quem sabe.
