Adeus ao revolucionário

São Paulo – Morreu o Gigante Negão, ou Nego Dito, ou Preto Brás, ou Beleléu, ou Itamar Assumpção, um dos notórios “malditos” da música popular brasileira. Morreu à margem, como viveu – embora tenha passado boa parte da sua carreira tentando provar que era um compositor popular, um homem do povo, um tradutor da paulicéia. Itamar Assumpção morreu anteontem à noite, aos 53 anos, em casa, vítima do câncer no intestino.

O corpo de Itamar – nascido Francisco José Itamar de Assumpção em 13 de setembro de 1949, em Tietê, São Paulo – foi enterrado ontem, às 13h, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, no cemitério Jardim das Colinas, cercado pelos amigos de longa data: Ná Ozzetti, Arrigo Barnabé, André Abujamra, Edvaldo Santana, Boccato e outros.

Itamar era tido como um compositor difícil, de gênio explosivo, caprichoso e demasiado exigente. Ironicamente, seu grande sonho era ser aceito pelo povão, como dizia. Mas não queria conversa: concessões em nome do sucesso fácil, jamais as fez.

Alguns o encaram como uma espécie de espelho paulistano de Luís Melodia (poucos conheciam tanto as cercanias da Penha e os sambistas paulistanos de boteco da zona leste), mas Itamar caiu em armadilhas menos letais que Melodia, ao longo da carreira. Manteve-se rigorosamente centrado num propósito. Atualizou para um público universitário, no início dos anos 80, o legado de Ataulfo Alves, Cartola, Noel Rosa e toda uma geração precedente da música brasileira, que ouvia no rádio, filho que era de família musical. De outro lado, tentou, com certo heroísmo, ampliar o repertório da composição popular, fazendo pontes com a literatura nova de Leminski ou a lírica banida de Mautner e Tom Zé.

Se formos rigorosos, podemos dizer até que Itamar foi um dos primeiros rappers do País, ao lado de Jair Rodrigues. Seu estilo marcadamente falado, onomatopaico às vezes, fundado na palavra e nos sons da palavra – foi muito influenciado por um dos seus parceiros, Paulo Leminski – só não fez escola porque suas proposições eram mais complexas e variadas.

“Faço rap, ritmo e poesia, desde Nego Dito, pois é uma linguagem universal urbana, não criada por americanos, um lamento dos nossos antepassados”, ponderou, certa vez. “Sou, assim como os Racionais, um descendente de escravos africanos, como Ben Jor, Melodia e Macalé também são”, afirma. “A questão é que o rap pode ser feito por quem não conhece e não sabe fazer melodia nem harmonia; é feito por gente que não fez universidade, que pode comunicar-se rapidamente e dar uma resposta à situação social.”

Estripolias no Paraná

Por uma triste coincidência, Itamar Assumpção morreu com os mesmos 53 anos que tinha o irmão Narciso ao morrer, em 28 de maio de 2001, por problemas cardiovasculares e broncopneumonia. A família Assumpção mudou-se para Arapongas em 1961, quando Narciso tinha 14 e Itamar 12 anos. Ao lado da irmã Denise, Itamar (depois de desistir da faculdade de Contabilidade) e Narciso participaram de diversas peças de teatro – Itamar compondo temas simples ao violão enquanto Denise e Narciso atuavam. Estes dois chegaram a participar do famoso espetáculo Fulano de Tal, de Manoel Carlos Karam, ao lado de José Maria Santos.

Se Denise e Itamar prosseguiram no caminho das artes, Narciso abraçou o jornalismo. Foi o primeiro repórter e apresentador negro da televisão brasileira, tendo sido também repórter policial da Tribuna do Paraná e integrado a equipe de reportagem da TV Iguaçu.

Itamar, por seu turno, veio a se convencer da sua profunda ligação com a música em 1970, quando foi preso em Londrina por estar carregando um toca-fitas. “Preto é sempre suspeito”, dizia, sem se estender muito: “Sou preto, não sou mulato, mas não falo de racismo, tenho dom, talento”. Na cadeia, caiu nas graças de um dos presos mais respeitados. Arranjou um violão e começou a tocar. “Eu tinha de ficar ali para ouvir um recado. Um bandidão, de olho vazado, me olhou e disse que eu cantava bem”.

Do Canindé ao Lira Paulistana

Quase o destino leva Itamar Assumpção para uma atividade completamente diferente da música: em 1969, um olheiro de futebol, da Portuguesa de Desportos, o viu em Arapongas, no norte do Paraná, jogando uma pelada. Levou o garoto para treinar no Canindé, onde ele conta que passou um mês concentrado. Abandonou o futebol precocemente porque disse que não agüentava a disciplina e a rigidez das concentrações.

Voltou ao Paraná, onde acabou encontrando nos festivais universitários de Londrina aquele que seria seu parceiro mais freqüente, Arrigo Barnabé, um influenciando o outro – o lado apolíneo de Arrigo rendendo-se ao Dionísio que Itamar trazia em seus arranjos percussivos, suas músicas arredondadas embaladas pelo baixo do vozeirão gutural. Juntos, apresentaram Sabor de Veneno, de Arrigo, no Festival da Tupi, em 1979.

Interessante notar que, entre os intérpretes, foram as mulheres quem se deram melhor com as composições de Itamar. Ele foi gravado por gente como Zizi Possi, Ná Ozzetti, Tetê Espíndola, Neusa Pinheiro, Denise Assumpção (irmã do músico), Cássia Eller, Zélia Duncan, Dulce Quental, Virginie e Eliete Negreiros.

Em 1979, já em São Paulo, Itamar se tornaria um dos grandes articuladores daquilo que ficou conhecido como o Lira Paulistana, e que envolveu uma geração nova da MPB, ocupada em renovar com pressupostos vanguardistas o legado que tinha se estagnado com a forte influência dos tropicalistas.

Entre esses músicos, além de Itamar e Arrigo, estavam os grupos Rumo e Sossega Leão, Premeditando o Breque, Vânia Bastos e outros. “É difícil dar o seu recado de compositor num país que tem Milton, Caetano, Jorge Ben Jor e outros”, afirmou ele, na época. “Tem de provar, comprovar e essas coisas passam a ser mais claras, depois de um certo tempo; a movimentação em São Paulo foi importante para essa sobrevivência”.

Em entrevista recente, Arnaldo Antunes – um dos “esquisitos” que conseguiram cair no gosto do público depois de muita luta – comentava sobre esses desígnios bizarros do sucesso. “No Brasil inteiro, há compositores que têm mais dificuldade no trato com a mídia e outros – por motivos que nem sei dizer muito bem – acabam tendo uma penetração maior de público. Acho que isso depende um pouco do temperamento do compositor, do espaço que ele acaba conquistando, de boa ou má vontade de alguns setores da mídia, de casar o momento dele com o momento do público. Algumas coisas são incompreensíveis mesmo. Por exemplo: Itamar Assumpção, não sei por que ele não faz sucesso, pois aquilo é muito bom”.

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