Aos 78 anos, Adélia Prado lança Miserere, seu oitavo livro de poesia. O leitor reconhecerá aí uma voz familiar, inconfundível em seu saltério mineiro de louvores, súplicas, cantos de órfã e de exilada. Mais um exemplar de uma poética ambivalente de reverência e irreverência, fervor e emoção erótica.

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Adélia continua a fazer seu cosmo poético em Divinópolis, cidade onde vive até hoje e que é metáfora do sagrado imiscuído às coisas do mundo em seus livros. Servem de síntese dessa poética versos de Senha, de Miserere: “Tento a rosa de seda sobre o muro / minha raiz comendo esterco e chão”. Desabrochada do mais ordinário e cotidiano da vida, eis a rosa mística de Adélia, que participa nesta segunda-feira, 24, do programa Roda Viva, na TV Cultura, e na terça-feira, 25, do Sempre Um Papo.

Além desse cosmo já conhecido do leitor, onde “o velho também é mistério”, há em Miserere uma ambivalência mais sutil, já presente em A Duração do Dia, livro anterior de Adélia, na imagem da neblina como respiração próxima de Deus. Esse “onipresente vapor” retorna agora como bruma que “provada no corpo é fria” e “na alma expandida é gozo”. O sentimento dessa proximidade atravessa as quatro seções do livro: Sarau, Miserere, Pomar e Aluvião. Não por acaso, repouso é uma palavra recorrente no livro e frequente o tema da morte. “Pois o encontro agora escuro e fosco / no dia radioso é único e não cintila. / (…) / Vivo do que não é meu. / Toma pois minha vida / e não me prives mais / desta nova inocência que me infundes”. Esse apelo em oração nos versos finais de Aluvião, único poema a compor a seção que fecha o livro, antecipa o gozo de um encontro que provado no corpo é repouso e na poesia de Adélia é lirismo.

“Eternidade? E a relva? / E repousar nela sem interdições, / sem ninguém me gritar: ô preguiçosa.” Adélia quer a eternidade e a relva, o gozo de um repouso e outro. Seus poemas são de júbilo, sua antífona é “mista e quebrada” porque humana, e o amor continua a ser sua pena num duplo sentido. Adélia fala de uma sensação de desterro, de orfandade e da saudade “de carne e ossos / acidez de sangue e suor” que um dia a exilou da filosofia. Esse desterro é ainda o espaço poético de uma espera, o sagrado que a poeta encontra fora da igreja, na vida: “Minha reza é deitar na pedra quente, / satisfeita e feliz como lagartixa no sol”. A escolha de Marie Noël para a epígrafe de abertura de Miserere é emblemática: Adélia tem a mesma fome de Deus que inspira Marie Noël em seus escritos, uma fome incivilizada, mística.

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Convivem em sua poesia o vozerio dos mortos e os açúcares das frutas, o espírito da infância e uma “doutrina severa”, que “faz sofrer, / mas a ninguém perderá se for uma doutrina bela”. Seu miserere é uma oração feita de corpo, dos pequenos prazeres e temores do corpo, essa casa frágil, falível, que se deteriora, cede com o tempo e tem a ver com a falibilidade da própria linguagem para tocar o que é sagrado. Adélia expõe essa falibilidade e exalta o erro maravilhoso, como o que fazia seu pai ao dizer pétula em vez de pétala, uma poesia feita de matéria humana, amorosa, suja de vida, um cosmo particular em que se misturam o insignificante e o magnificente, o prosaico e o inefável.

Curiosamente, no livro Terra de Santa Cruz, de 1981, há também um poema intitulado Miserere. Nele, Adélia escreve: “Como gostaria de nascer de novo / e começar tudo generosamente”. Isso é o que tem feito a cada livro, com um autêntico desejo de descoberta, de inocência, de olhar puro tantas vezes associado ao olhar do poeta no âmbito do discurso literário, embora cada vez mais raramente essa pureza seja posta em prática. Parafraseando Adélia em seu novo Miserere, o nome do espírito desse livro é coragem.

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As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.