Um dos slogans mais famosos de Donald Trump foi adaptado e virou meme na internet: “Make Orwell Fiction Again” (“Façam Orwell ser ficção novamente”) atualiza o legado do escritor inglês George Orwell (1903-1950) contra posições autoritárias. A mensagem contra o totalitarismo é o que está por trás de A Revolução dos Bichos, clássico romance de 1945, que ganha sua primeira versão global em quadrinhos agora, no Brasil – feita pelo artista gaúcho Odyr, com o texto de Orwell traduzido por Heitor Aquino Ferreira. Para quem ainda não entendeu, agora está desenhado.
O livro foi negociado pela Companhia das Letras com a agência do espólio do escritor, geralmente refratário a esse tipo de projeto. A editora apresentou rascunhos de Odyr, um projeto editorial e conseguiu os direitos. Também acertou de negociar com outros países. A Penguin Random House vai publicar o livro na Inglaterra e na Espanha, a Houghton Mifflin Harcourt leva o trabalho para os EUA e a Mondadori na Itália.
“Não posso revelar as somas, mas foram valores altos”, diz o publisher da Companhia das Letras, Otávio Marques da Costa. “Ter uma edição americana significa que vai haver um investimento grande, escolar e de divulgação, tem muito potencial.”
A editora também fechou o contrato para a produção de uma adaptação de 1984 – o quadrinista ainda não foi definido.
Resumo rápido de A Revolução dos Bichos: os animais da Granja do Solar, cansados da exploração e da vida miserável imposta pelos humanos donos da fazenda, se rebelam e criam um novo sistema de governo, mais igualitário. Entre um corvo que conta mentiras (espalha notícias falsas) e um período de prosperidade, os porcos – os animais mais inteligentes, líderes da revolução – começam a criar e usufruir de um sistema de privilégios que pouco a pouco leva a vida de volta ao que era antes.
O que chama atenção no livro é que o caráter à clef da narrativa – conscientemente uma alegoria da história da Revolução Russa na primeira metade do século 20 – não se perde com o passar do tempo, e chega fresco a 2018.
“Tentei me concentrar no essencial e atemporal”, diz Odyr sobre a adaptação. “E o essencial do livro é tremendamente atual – a prática da desinformação, o uso do medo e paranoia instrumentalizado, a supressão de direitos, a repressão contra protestos – está tudo lá. A tristeza da submissão ao autoritarismo, o desejo de poder… São coisas que estamos vendo todo dia nas notícias.”
A tinta acrílica usada nas composições dos quadrinhos é outro fator impressionante do livro. Material raro quando o assunto é quadrinhos, a acrílica empresta ao trabalho uma feição de obra de arte visual – ela também não foi uma escolha exatamente consciente para o autor. Insatisfeito com a “natureza absolutista” do nanquim, Odyr procurou uma alternativa na acrílica por acaso e esse se tornou seu material padrão nos últimos cinco anos.
“Sempre tive muitas dúvidas sobre quadrinhos pintados, sobre a fluência da linguagem com o uso da pintura, mas estou feliz com o resultado. Mantendo o livro muito aberto, com poucos fundos, pouca divisão em quadros, acho que a narrativa flui, não se interrompe na apreciação de imagens isoladas”, afirma. “E no final acho que a pintura beneficia o meu projeto para o livro ser como um livro infantil para adultos.”
Entre as influências que o artista cita na pintura, estão nomes como Paul Cézanne, Henri Matisse, Edward Hopper, Richard Diebenkorn, e nos quadrinhos, Lorenzo Mattotti e Jacques de Loustal.
Dia desses, no Twitter, Odyr comentou uma entrevista de Lourenço Mutarelli na Folha de S. Paulo em que o paulistano dizia que estava “absolutamente falido”. O gaúcho acredita que o artista em geral “simplesmente se acostuma a viver no caos, viver de milagre, porque não consegue imaginar outra vida”.
“Depois de ter morado em algumas capitais voltei para Pelotas para ter a vida mais simples e barata possível, para poder me dedicar ao máximo ao meu trabalho”, explica agora. “Acompanho os amigos que moram no Rio e em São Paulo e sei que a maior parte deles não pode por exemplo pintar todos os dias, como pinto, porque eles têm de fazer freelas constantemente para se manter. Então nesse sentido, ser pobre é um luxo – me dá o direito de fazer o que quero. Mas tem um desgaste ao longo dos anos, viver assim perigosamente, sem saber como pagar o próximo aluguel, contas acumulando, sempre no risco. A essa altura do campeonato, não tenho mais fantasias de nenhum sucesso extraordinário – meu desejo honesto para esse livro é que me traga de volta para a classe média.”
Em agosto, a Netflix anunciou a compra dos direitos do livro de Orwell para um filme a ser dirigido por Andy Serkis, conhecido por seu trabalho em O Senhor dos Anéis e O Planeta dos Macacos.
O histórico de adaptações de A Revolução dos Bichos para outros meios tem histórias curiosas. Chico Buarque escreveu Fazenda Modelo, de 1974, inspirado no livro. Antes, em 1954, a CIA estava por trás de um desenho animado inspirado na história – que foi barrado na França, por exemplo, por ser considerado “muito anticomunista”. A participação da agência americana no filme só ficou conhecida do público 50 anos depois. Em 1959, o governo britânico embarcou numa ideia parecida ao produzir uma tira de jornal inspirada no livro e distribuí-la como propaganda anticomunista para diversos países – entre eles, México, Índia, Venezuela, Tailândia e, sim, Brasil.
A REVOLUÇÃO DOS BICHOS
Autor: George Orwell
Adaptação e ilustração: Odyr
Tradução: Heitor Aquino Ferreira
Editora: Quadrinhos na Cia.
(176 págs., R$ 69,90)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.