A morte de Pier Paolo Pasolini, assassinado em novembro de 1975, tem assombrado a Itália desde então. Já surgiram filmes sobre o fato, entre eles Pasolini, um Delito Italiano, de Marco Tullio Giordana, que, por assim dizer, socializa o crime, imputando ao país inteiro, à sua intolerância e indiferença, o assassinato perpetrado por garotos de programa na praia de Óstia, próxima a Roma. Outra é a perspectiva deste Pasolini, de Abel Ferrara, que surpreendeu o Lido com seu lirismo e visão poética do último dia de vida do genial poeta, ensaísta, provocador e cineasta de títulos provocativos como Accatone, O Evangelho Segundo São Mateus e Salò, entre outros. Na sala, foi recebido com certo pasmo.

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Afinal, Ferrara prefere uma linguagem um tanto onírica, de todo modo não-realista, ao enfocar o cotidiano do cineasta em sua última jornada. Pasolini é interpretado com bravura por Willem Dafoe, enquanto sua mãe, Susanna Pasolini, é vivida por Adriana Asti, e a atriz Laura Betti, amiga e atriz de vários de seus filmes, pela portuguesa Maria de Medeiros. Mas não há dúvida que a grande presença no longa, que concorre ao Leão de Ouro, é a de Ninetto Davolli, amigo e participante em onze filmes de Pasolini.

A participação de Ninetto se dá na melhor sequência do filme. É quando ele interpreta Epifanio, papel que seria destinado ao ator Eduardo de Filippo no filme nunca realizado por Pasolini, Porno-Teo-Kolossal. Contracena com ele Riccardo Scarmaccio, que interpreta Nunzio, papel que seria destinado ao próprio Ninetto Davoli quando jovem. É, sem brincar com o nome do personagem principal, um momento de epifania dentro do filme de Ferrara. Com tonalidade francamente felliniana, mostra os dois fazendo uma peregrinação terrestre, no qual visitam o reino de Sodoma e presenciam uma movimentada orgia. Depois, contemplam a Terra vista da Lua e meditam sobre o destino dos homens que a habitam. Essa obra não realizada talvez seja a súmula da visão do mundo de Pasolini no momento de sua morte: a tentativa de poesia radical num mundo que o desesperava e via à beira de um novo fascismo, o da triunfante sociedade de consumo. Previsão plenamente realizada, como se sabe.

Ninetto não é figura dominante apenas no filme. Com sua exuberância meridional, o intérprete de filmes como Teorema, Gaviões e Passarinhos mal deixou os outros falarem na coletiva de imprensa. Mesmo quando não entendia perguntas feitas em inglês, prontificava-se a responder. E falou bem. Disse que acha besteira falar do espírito de autodestruição do cineasta. “Pasolini amava a vida. Denunciou quando fomos capturados por um sistema consumista que destrói o ser humano e por isso lutava contra, com todas suas armas. Incomodava muita gente”. Ninetto lembrou que Pasolini enfrentou mais de 30 processos ao longo da vida. “Ele não se importava, não se deprimia, nada podia detê-lo. Era uma força da natureza”.

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O filme expressa essa energia, intelectual e física, do cineasta. Até mesmo em seu desfecho trágico, massacrado por “ragazzi di vita”da praia de Óstia. “A morte de cada um reflete sua própria vida”, diz Ferrara. Como comentou um jornalista italiano, ninguém no fundo se surpreendeu com a maneira como Pasolini morreu. Surpreendente seria ter morrido na cama, de um enfarte ou uma congestão intestinal.

Fantasmas do passado

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A Itália não é a única a enfrentar os fantasmas do passado. Esse é também o tema de outro título forte da competição, Red Amnesia, do chinês Wang Xiaoshuai. A personagem principal é a viúva Deng, que está aposentada, cuida de dois filhos e da mãe idosa. Sua tranquilidade termina quando começa a receber telefonemas ameaçadores. A partir de então, o registro realista é abandonado e, por vezes, vê-se o fantasma do marido aparecer na tela. Outra figura, que não se sabe se real ou imaginada, se insinua: um rapaz de boné vermelho, que parece ameaçar Deng.

Essa situação confusa basta para fazê-la mergulhar em seu próprio passado e em fatos da época da Revolução Cultural, quando ela morava com a família no interior do país e não em Pequim, como agora. Culpa, traição, remorsos e um passado que teima em permanecer vivo e atormentar os sobreviventes de uma época conturbada na história do país surgem numa mise en scène que, embora não brilhante como a do seu conterrâneo Jia Zhang Ke, garante uma narrativa envolvente e avessa a clichês. Agradou em cheio e há quem já fale em Leão de Ouro. Exagero, talvez.

Mas é possível que o filme mais bonito e emocionante da Mostra não esteja na competição principal e sim na seção paralela Giornate degli Autori. Trata-se de Le Retour à Ithaque, do francês Laurent Cantet, acolhido com cerca de 10 minutos de aplausos. Também é um acerto de contas, desta vez em Cuba. Quatro amigos e uma amiga reúnem-se num terraço em Havana para festejar a visita de um deles, morando há 16 anos na Espanha.

Cantet, autor de Entre os Muros da Escola, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, faz um filme de diálogos. A palavra é soberana na discussão daqueles personagens dilacerados pela trajetória política do país, excepcional para uma nação com população inferior à da cidade de São Paulo. O roteiro foi escrito pelo próprio Cantet e pelo escritor cubano Leonardo Padura Fuentes. “Fiquei impressionado pelo personagem de um dos livros de Padura, um cubano que retorna ao país depois de longo tempo no exterior. Tomamos essa figura e, em torno dela, criamos toda a história”, disse Cantet, em conversa após a projeção.

Os amigos viveram e rememoram dramas variados. Tania (Isabel Santos) é uma oftalmologista que precisa viver do dinheiro enviado pelos filhos, moradores em Miami. Eddy (Jorge Perugorría, de Morango e Chocolate) é um aproveitador, que, com suas atividades escusas, tem acesso aos bens de consumo vedados aos cubanos comuns. Rafa (Fernando Hecheverria) é um pintor que prostituiu sua arte e caiu no alcoolismo. Amadeo (Néstor Jiménez) continua idealista, porém tem um filho cujo maior sonho é deixar a ilha. Aldo (Pedro Julio Díaz Ferran) voltou de Madri porque não consegue escrever fora de Cuba e precisa retornar à sua vocação.

Todos na meia-idade, fazem, através de suas histórias pessoais e de sua amizade, um balanço, agridoce de toda uma geração. Aquela que acreditou na revolução, e, de uma forma ou de outra, decepcionou-se com os rumos tomados pela história. Exibem um dilema facilmente reconhecível por quem já esteve na ilha e sentiu-se o espírito. São críticos mas, se deixam o país, sentem-se completamente desenraizados. Falam do sofrimento bem real, mas não abandonam o toque de humor caribenho. Toda a dilacerante situação cubana, expressa nessa dialética do fica ou partir, encontra-se nessa história sensível, bem escrita e que encontrou uma esplêndida trupe para interpretá-la. Cantet os dirige com refinamento e reafirma-se como mestre em situações fechadas e personagens complexos e multifacetados. Seu cinema representa para o espectador um ganho de sensibilidade e compreensão. Não é pouca coisa.