Maria Valéria Rezende ainda não sonhava em ser escritora quando essa história começa. Era início dos anos 1980 e esta freira nascida em Santos em 1942, e que àquela altura já tinha percorrido o mundo e os rincões do Brasil com seu trabalho missionário, pesquisava a situação da mulher e a vida religiosa no Brasil colonial quando se deparou com registros sobre uma mulher acusada de criar um convento clandestino no País. Ela nunca tinha ouvido nada parecido.

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Foi no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, no qual ela mergulhou durante um mês e meio em 1982, depois de quase um ano pesquisando o assunto no México, que Maria Valéria Rezende encontrou três cartas sobre essa mulher. Na primeira, um padre mandava dizer ao arcebispo da Bahia que a acusada não passava de uma idosa que tinha se recolhido à sua casa e que outras mulheres na mesma condição tinham se juntado a ela. A segunda carta, de dois anos depois, de outra pessoa, dizia que ela foi muito astuciosa e enganou o primeiro visitante, e que tinha sim fundado um convento numa época (Ciclo do Ouro) e região (Minas) que proibia a entrada de qualquer ordem religiosa. A terceira era da mulher, de próprio punho, e nela ela se defendia – não sem ironia.

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Maria Valéria foi atrás de mais informações sobre ela nos livros de História, e nada. Escreveu um artigo acadêmico com o resultado de sua pesquisa, citou a mulher e tocou a vida adiante.

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Os anos se passaram e volta e meia ela se lembrava de Isabel. “Eu me sentia em dívida para com aquela mulher por não ter contado o caso dela, por não ter chamado a atenção para o que fizeram com ela”, explica a autora, aos 77 anos, ao jornal O Estado de S. Paulo. Maria Valéria, porém, não sabe nada além do que dizem as tais cartas – mas é uma excelente ficcionista.

Há cerca de 10 anos, surgiu a ideia de escrever um romance e criar uma história para essa personagem esquecida. Carta à Rainha Louca será lançado nesta quinta, 11, com um bate-papo entre a autora, Paula Fábrio, também escritora, e Claudiney Ferreira, gerente do núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural, às 19h, na Biblioteca Mário de Andrade, com ingressos distribuídos a partir das 18 h.

No livro, encontramos a personagem em 1789, já no fim da vida, depois de tudo o que passou, presa no Recolhimento da Conceição, em Olinda, à espera, mas sem muita esperança, de um barco que a levará para ser julgada em Portugal. Ela então se põe a contar sua história e o caminho que percorreu até ser esquecida naquele lugar.

O romance é estruturado em quatro partes – em carta da narradora para Maria, a Louca, entre 1789 a 1792. “Ela acha que Maria, sendo mulher, vai entender sua situação e poderá ajudá-la. Mas de tanto ser chamada de louca, já não tem certeza se está com a cabeça certa ou não”, diz.

O período histórico que serviu de pano de fundo para este “romance meio rocambolesco, sem grandes ensaios feministas” (embora isso possa ser lido em cada linha escrita ou rasurada pela narradora), estava na ponta da língua. Difícil mesmo foi a tarefa que ela se impôs: “Eu fiz questão de fazer um texto plausível no século 18 e legível no 21, e empaquei. O livro era muito trabalhoso, e fui escrevendo os outros.”

Os “outros” a que se refere são Quarenta Dias (2014), ganhador do Livro do Ano do Jabuti, e Outros Cantos (2016), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e do Casa de las Américas. O primeiro conta a história de uma mulher que se vê obrigada a abandonar sua vida para ajudar a filha a ter a dela, e que surta, passa a viver nas ruas e vai mostrando esse Brasil invisível. O segundo acompanha Maria em sua volta ao sertão 40 anos depois de ter chegado lá para ser professora do Mobral e ajudar a fazer a revolução a partir do povo, como se apresenta a personagem.

No meio disso, Maria Valéria ganhou uma bolsa do projeto Rumos, do Itaú Cultural, deixou de lado as traduções que a ajudavam a complementar a aposentadoria e pôde se dedicar à obra. “Se não fosse por isso, eu não teria como terminar. Poderia até ter publicado, poderia ter matado a mulher antes que ela terminasse a carta, mas não era o que eu queria.”

Este não foi o primeiro apoio que recebeu para escrever um livro – Outros Cantos ganhou bolsa da Petrobrás -, e ela está preocupada com “as restrições que estão chegando no campo da Cultura” e com a distribuição de livros para escolas, que está “empacada”. “Um ano sem distribuir livro prejudica toda uma geração. Às vezes isso ocorre na idade crucial em que o menino precisava ter coisas interessantes para ler, passa o momento e ele envereda por outro caminho e não vai mais ler”, acredita.

Mas Maria Valéria é, sobretudo, “esperançosa”. “Sempre que racha o cimento, em pouco tempo começam a crescer plantinhas. A vida é a graminha esperando a rachadura, e as rachaduras estão aí por todo o lado, e estão crescendo coisas”, diz a escritora sobre os caminhos alternativos às crises política, da cultura, do mercado editorial. Vale lembrar que Maria Valéria é idealizadora do movimento Mulherio das Letras, criado em João Pessoa, onde ela vive, e que já chegou até a Portugal, incentivando mulheres a escrever e divulgar seu trabalho.

A escritora, que em suas andanças conheceu Fidel Castro e García Márquez, deixa um recado aos mais jovens. “Estou aqui há muito tempo, desde a bomba de Hiroshima, antes da penicilina e já vi cada fim de mundo… Claro, há sofrimento e dor, mas não é tão fácil acabar assim com a vida. O papel de gente velha é dizer para os jovens, que estão mais desanimados: vamos para a frente que atrás vem gente. E dizer que é possível ultrapassar isso tudo e se refazer – se nos juntarmos, claro. Individualmente, não dá.”

CARTA À RAINHA LOUCA

Autora: Maria Valéria Rezende

Editora: Alfaguara (144 págs.; R$ 49,90)

Lançamento: Hoje (11), 19h, na Biblioteca Mário de Andrade, com debate

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.