No exíguo espaço do Teatro Pequeno Ato, Henrique Zanoni e Adriana Guerra realizam o que é quase um auto de expiação. Na verdade, é um ensaio da peça A Vida dos Homens Infames, exclusivo para o jornal O Estado de S.Paulo. O cenário ainda não é o definitivo, porque eles ainda usam o da peça que estava em cartaz até o fim de semana passado no teatro da Rua Antônio Baima, no Centro de São Paulo. Eles poderiam estar representando no meio da rua, num instituto psiquiátrico, numa cadeia. O espectador não teria olhos senão para eles.
A Vida dos Homens Infames estreia nesta sexta-feira, 4. Encenado pela Cia. dos Infames, o espetáculo integra o projeto Foucault 30 Anos: Um Infame Encontra o Teatro, que homenageia o filósofo francês no momento em que se completam 30 anos de sua morte. A Cia. dos Infantes foi criada por Henrique Zanoni e Cristiano Burlan para ser, no teatro, uma espécie de braço da Bela Filmes, com que eles vêm desenvolvendo sua bem-sucedida atividade cinematográfica. Burlan é o diretor do admirável documentário Mataram Meu Irmão, que venceu o É Tudo Verdade no ano passado. Também fizeram Ama-dor, que passou na Mostra de Tiradentes, em janeiro.
Com os Homens Infames, Cristiano Burlan volta ao teatro, que já exercitou em Barcelona. A peça antecede a próxima estreia de Hamlet, o novo filme da dupla, que vai estrear no Festival de Cinema Latino-Americano, em julho. São 30 anos de Foucault, 450 anos de Shakespeare. “Vai parecer oportunismo da gente”, diz o diretor. Seria, se eles estivessem fazendo todas essas coisas às pressas, para faturar em cima de datas redondas. O filme, como o espetáculo, nasce de muita dedicação – e paixão. “Meu irmão é filósofo e sabe tudo sobre Foucault, mas o meu interesse por ele veio de uma palestra. Achei o conceito dos homens infames muito interessante. Mexeu comigo. O próprio Foucault foi um homem infame na vida, mas deixa quieto. Não queremos nenhum sensacionalismo.”
O que mais impressiona é o despojamento. Zanoni e Adriana Guerra vestem um macacão de aspecto rude, bruto, que você não consegue identificar direito. “Tem a ver com o conceito de Foucault. Em As Palavras e as Coisas, ele descreve personagens numa situação e desafia o leitor a identificar onde estão – se num hospital, numa escola ou numa prisão.” O uniforme ajuda a padronizar os personagens em cena. A individualidade vem por meio da fala, que reproduz o sofrimento. “O próprio Foucault relativiza a ideia de autoria, e eu não posso dizer que essa é minha concepção do texto. Tudo aqui é muito coletivo, por mais que a ideia esteja desgastada, ou seja discutível. Há uma direção, e é minha, porque tem sempre o momento em que alguém tem de ter a palavra final. Nosso espetáculo não tem artifício nenhum. Só a palavra e o físico.”
A Vida dos Homens Infames baseia-se nos textos Eu, Pierre Rivière, Que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão e Herculine Barbin, Diário de Uma Hermafrodita, que pela primeira vez ganham montagem teatral. A dramaturgia é de Zanoni com Marcela Vieira. Após a encenação, em conversa com o diretor e o elenco, o repórter lembra a adaptação de René Allio para Pierre Rivière, que saiu recentemente no Brasil em DVD. Zanoni observa – “Achei bem rigorosa, mas o que gostei de verdade foi do fato de o diretor ter feito camponeses de verdade interpretarem os personagens.”
Como o cenário – o diretor explica que vai ser despojado -, a própria dramaturgia consiste num jogo que contrapõe essas duas vozes. Os atores falam, mas partes também são gravadas. “Não inventamos nada. Nem Foucault. Todo o material sobre Pierre Rivière e Herculine Barbin vem de autos médicos e processuais”, diz Zanoni. Ele matou a mãe, o irmão e a irmã. Ela nasceu hermafrodita e isso não se enquadrava nos parâmetros da sociedade de seu tempo, que tudo fez para encaixá-la brutalmente num sexo. Nada interessava mais ao filósofo, filólogo, teórico social e crítico literário Michel Foucault. Em sua breve vida – morreu em 1984, aos 57 anos, de complicações decorrentes de aids -, ele não fez outra coisa senão abordar a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle dos indivíduos por meio das instituições sociais.
Doença Mental e Psicologia, História da Loucura na Idade Clássica, Nascimento da Clínica, A Arqueologia do Saber, A Sociedade Punitiva, Vigiar e Punir, A História da Sexualidade. A par de suas questões mais estruturais e linguísticas, que levam os críticos e os próprios filósofos a discutirem se Foucault é kantiano – suas ideias teriam muito a ver com as de Emanuel Kant -, pós-estruturalista ou pós-moderno, é a crítica das instituições que faz dele uma referência para ativistas de todos os quadrantes. O próprio Foucault tornou-se ativo junto a grupos de esquerda envolvidos em campanhas antirracistas, contra violações dos direitos humanos e pela luta por uma reforma penal.
Na reportagem do último domingo, Débora Dines lembrou Foucault e, em especial, A Vida dos Homens Infames. “Foucault é daqueles autores para ler e levantar a cabeça, uma alegoria de seu colega Roland Barthes para as obras que nos inquietam. Foi assim que admirei (palavras de Débora) os fogos de artifício da pequena peça A Vida dos Homens Infames, um texto de 1977 que seria um prefácio de obra, mas ganhou estatura solitária. Homens infames são aqueles que passariam a vida sem o registro da história, se não tivessem cruzado suas biografias com o poder. Em particular, com o poder judiciário ou policial. Os arquivos do poder registram breves notícias dessas vidas sob a inspiração da infâmia. Os homens infames passam a ser imortalizados pelo arquivo do poder que os noticia, em geral por malfeitos à ordem. Foucault teve adoração pelas notícias de homens infames em arquivos históricos.”
Pierre Rivière, assassino de sua família – Cristiano Burlan reconhece que esses temas o perseguem. Mas não foi para fazer uma ponte com Mataram Meu Irmão que Zanoni e ele quiseram montar Homens Infames. “É muito forte, e tem tudo a ver com questões de autoridade e poder, aqui e agora”, diz o diretor. O projeto Foucault 30 Anos – Um Infame Encontra o Teatro inclui um ciclo de debates, também no Pequeno Ato, sempre aos sábados, a partir do dia 19. A primeira mesa vai se chamar Foucault, Filosofia e Teatro e terá como convidados Daniel Pereira Andrade e Ruy Filho. Nas semanas seguintes, até 16 de agosto, serão debatidos vários temas.
“Buscamos pessoas que pudessem transmitir suas experiências, mas não necessariamente fazer um curso. Tem gente que diz que não entende de filosofia, outros de teatro. Cada um em sua área, queremos ver como será a troca, que é o que mais nos interessa”, define Henrique Zanoni. A Cia. pretende editar um livro dessas discussões. Outras mesas – Dramaturgia e Escrita Infame, com Fábio Zanoni, irmão de Henrique Zanoni, e Samir Yazbek; A Experiência do Teatro, com Ana Goldenstein, Érika Forsato e Maria Eugênia de Menezes; Subjetividade e Técnicas Psi no Teatro, com Luiz Fuganti e Roberto Alvim; O que é um ator?, com Salma Tannus e Cia dos Infames. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.