Quem foi o maior gênio da humanidade. Aristóteles, Shakespeare? Einstein? Freud? Marx? Nietzsche? Se essa pergunta tem algum sentido, é provável que a maioria das respostas convirja para outro eleito, Leonardo da Vinci (1452-1519), nome referencial do Renascimento.

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Misto de cientista, anatomista, filósofo, construtor de máquinas de guerra, arquiteto, escultor e pintor (“Io anche sono pittore”, afirmava, no currículo), Da Vinci impressiona, também, pela diversidade dos seus interesses e habilidades. Vem do personagem o encanto dessa minissérie italiana, de 325 minutos (“A Vida de Leonardo da Vinci”, 2 DVDs, Versátil, R$ 67), datada de 1971 e dirigida pelo cineasta Renato Castellani, com produção da RAI.

Há dois dados de início a serem destacados nesta minissérie: primeiro, ela se baseia em sólida documentação e, segundo, não se permite falsear e romantizar aquilo que não se sabe da vida de Leonardo.

Quando se propõe a interpretação de alguma passagem nebulosa, diz-se, explicitamente, que aquilo é uma hipótese de trabalho, nada além. Para começar, o filme vai ao fim – isto é, à morte de Leonardo no castelo de Amboise, na França. Ele está no leito e lamenta não ter tido tempo de fazer tudo o que gostaria. Lembra o que foi deixado pela metade, projetos não saídos do papel, tanta coisa ainda por desenhar, pintar, escrever, compreender. Nessa cerimônia de morte de um sábio, irrompe na câmara a figura imponente do rei François I, ali levado para se despedir do seu mestre, protegido e amigo.

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Nesse ponto, entra em cena um personagem surpreendente, vestido com roupas do século 20 e afirma que a cena comovente que acabamos de ver simplesmente nunca aconteceu. Quando chegou ao fim da vida, explica, Leonardo era já uma lenda e a descrição dos seus últimos momentos tinha de figurar como a de uma morte gloriosa, assistida por um rei.

Foi assim como passou à posteridade, retratada em uma tela de Ingres, La Mort de Léonard de Vinci. Essa interrupção destacada na narrativa dará o tom da minissérie. O personagem, de terno e gravata, óculos e ar professoral (Giulio Bosetti) surge em cena a torto e a direito.

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“Contracena” com os personagens que, eles sim, participam de um filme de época, suntuoso, bem documentado e encenado ora em estúdio ora em locações reais da paisagem italiana.

Através deles acompanhamos a vida do garoto de Vinci, que, filho ilegítimo de um comerciante e uma camponesa, será criado pelo pai. Num mundo prático, ninguém dá muita atenção ao menino curioso, com exceção de um tio, Francesco, que o avô de Da Vinci, em seu diário, classifica como o inútil da família. Pois será esse sonhador desprezado, de nenhum espírito prático, que abrirá os olhos do menino para as maravilhas da natureza. Com ele, Leonardo aprenderá a contemplar uma flor, os rios, os bichos, as nuvens. E a tirar ensinamentos dessa contemplação em aparência inócua.

Interpretado por Philippe Leroy na idade adulta, Leonardo será visto nas principais etapas da sua trajetória. Apesar de sua extensão de quase seis horas, a minissérie coloca em termos dramáticos apenas alguns pontos-chave dessa odisseia de artista e homem de saber. E capta o que talvez seja a essência dessa obra e do que precisamos dela saber para a incorporarmos ao nosso universo mental e estético.

A saber, que é pela diversidade de interesses e a negação de fronteiras entre disciplinas que Leonardo se tornou grande e chegou até onde chegou. A curiosidade objetiva o levou ao estudo da anatomia que é, nada mais nada menos, que o estudo do interior do organismo para ver como ele funciona. Desenhava o que via, órgãos, músculos, articulações, ossos. E essa intimidade com as entranhas do ser humano se espraia em sua arte e refina-se. Por exemplo, seu São Jerônimo, um feixe de músculos distribuídos num corpo ascético, contém “erros”, pois é da fase prévia aos estudos anatômicos.

Leonardo buscava a exatidão, porque nele conviviam o cientista e o artista, o homem da observação e o da fantasia. No entanto, como estudos sugerem, se Leonardo aprofundava-se sempre mais nessa busca do rigor, sempre colocava seu mundo interior como lente para interpretar o real. Daí que a arte, a pintura em particular, era, para ele, não apenas meio de acesso ao real, mas a sua interpretação. E tinha a dimensão de um pensamento sem palavras. A pintura é, como ele dizia, “cosa mentale”.

De algumas de suas obras, assistimos o presumível processo de criação, como são os casos do afresco “A Última Ceia” ou do quadro “A Virgem nos Rochedos”. Para a Ceia, teve de inventar técnica mista, pois seu detalhismo não se casava bem com a do afresco tradicional, pintado sobre o reboco ainda úmido (daí o nome). E há também as obras problemáticas, como o afresco Batalha de Anghiari, no Palazzo Vecchio de Florença, que desapareceu, e só pode ser inferido pelos desenhos preparatórios e cópias que se salvaram. Na história contada pela minissérie, Leonardo o teria pintado lado a lado ao seu maior rival, um certo Michelangelo, que trabalhava na parede oposta. Para terminar seu mural a tempo, Leonardo teria testado uma técnica inédita de secagem a fogo, que se revelou desastrosa para a pintura.

Se a minissérie fornece esses detalhes do Leonardo artista e sábio, nunca perde seu foco, que é “o homem Leonardo”, como garante o narrador. No entanto, mostra-se bastante lacônica sobre a vida amorosa do personagem, como se esse grande inquiridor da natureza fosse desprovido de impulso sexual. É nas entrelinhas e alusões que intuímos seu relacionamento com Salaï, um estroina belo como querubim que ele toma como aprendiz e, mais tarde, na velhice, com o culto Francesco Melzi, que organizará seu legado e papéis após a morte. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.