A visão do compositor John Adams sobre óperas é quase violenta – o gênero, diz, arranca sentimentos das pessoas, os agride, soca, sufoca. Mas isso, garante, é uma boa coisa. Pois é daí que vem o poder emocional das obras. Seu caráter quase subversivo. Talvez por isso, nas óperas do compositor, a política seja sempre o tema. Mesmo quando a história a ser narrada é o nascimento de Cristo, caso de El Niño, obra que ganha sua estreia latino-americana nesta sexta-feira, 14, e sábado, 15, no Teatro Municipal de São Paulo.

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El Niño foi definida pelo compositor como um oratório que pode ser encenado (em São Paulo, será apresentada na versão em concerto). Foi escrita em parceria com o diretor Peter Sellars, com quem trabalhou em outras obras, como Doctor Atomic, sobre a criação da bomba atômica nos Estados Unidos; The Death of Klinghoffer, sobre o sequestro de um navio por palestinos, que levou à morte de um passageiro judeu; ou Nixon in China, sobre a viagem do presidente norte-americano ao país em plena guerra fria – todas elas inspiradas em episódios históricos recentes.

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“El Niño narra a história da Anunciação e do nascimento de Jesus, a aparição dos três reis magos, o assassinato vingativo de inocentes por Herodes e a fuga de Maria, José e Jesus para o Egito. E, como em muitos oratórios, há longos momentos de reflexão a respeito dos eventos descritos no drama”, diz o contratenor americano Paul Flight.

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A diferença é que, aqui, as reflexões são feitas quase sempre do ponto de vista das mulheres na vida de Cristo. Elas foram retiradas de evangelhos apócrifos, ou seja, escritos nos primeiros tempos do cristianismo e não reconhecidos pela Igreja. E também da poesia de autoras como Gabriela Mistral, Sor Juana Inés de la Cruz e Rosario Castellanos, cujas obras, em diferentes períodos históricos, tratam da opressão às mulheres, tornando-se leituras de referência para o movimento feminista.

“Usar vários textos e poemas escritos por mulheres é interessante, pois elas humanizam a figura de Jesus, além de tratar das dificuldades das mulheres, de refletir sobre a geração de uma vida”, afirma a soprano brasileira Marly Montoni, que terá ao seu lado, no elenco, a soprano Carla Filipcic Holm, o sopranista Bruno de Sá, o tenor Geilson Santos, o baixo Lício Bruno (também participam a Orquestra Sinfônica Municipal, o Coro Lírico, o Coral Paulistano e o Coral Infantojuvenil da Escola Municipal de Música, sob regência do maestro Roberto Minczuk).

A presença de poetas de língua hispânica não se dá por acaso – e, além da questão feminina, é a chave para a compreensão do caráter político da obra. “El Niño não é uma obra diretamente política como The Death of Klinghoffer ou Nixon in China. Mas, como acontece sempre nas suas parcerias com Peter Sellars, El Niño faz ao menos uma conexão política direta, quando se estabelece um paralelo entre o assassinato de crianças inocentes por Herodes e o massacre de Tlatelolco, ocorridos nos anos 1960 no México”, explica Flight, que já interpretou a obra em diversos teatros do mundo.

O Massacre de Tlatelolco foi o nome dado a um episódio ocorrido na Cidade do México em 1968. Aproveitando a proximidade dos Jogos Olímpicos, que seriam realizados na capital mexicana, e inspirados pelo movimento estudantil francês, alunos da Universidade Autônoma do México iniciaram protestos contra o governo do presidente Díaz Ordaz. Nos dias seguintes, milhares de pessoas foram à Praça das Três Culturas protestar contra as prisões, sendo reprimidas pelas forças policiais – na versão oficial, 40 pessoas foram mortas, número que chega a 200 nos depoimentos de estudantes que fizeram parte do ato.

A cena em que o massacre de Tlatelolco é evocado ocorre na segunda parte de El Niño e, para Flight, é “a peça dramática central e mais arrojada” da obra. Montoni, por sua vez, diz enxergar em passagens como essa o desejo do compositor de fugir do convencional, a partir de uma releitura contemporânea no modo como nos relacionamos com nossa história.

Flight tem se dedicado bastante ao repertório contemporâneo, participando de diversas estreias mundiais. Ele atribui essa escolha ao fato que muitos compositores encontraram neste tipo de voz uma qualidade interessante e versátil. Um exemplo é o próprio John Adams. “Ele sentiu-se atraído pela voz de três contratenores cantando em harmonia, trabalhando como um time na função de narradores ou representando as vozes de um único anjo ou mesmo no papel dos exóticos três reis magos”, explica.

Para ele, Adams, assim como outros compositores ligados ao minimalismo, “ajudou a fazer da música contemporânea algo muito mais acessível do que no século passado”. “E isso se dá também por conta de sua vocação para o drama.”