Um desafio comum a jovens estudantes de dramaturgia é encontrar a própria voz ao escrever suas peças. Isso é mais importante do que o tema a ser desenvolvido. “Eu sempre digo isso para meus alunos”, contou a dramaturga escocesa Jo Clifford. Para ela, o desafio foi dobrado. A autora trans precisou, antes de tudo, descobrir quem ela era e, assim, encontrar sua voz. Parte desse debate poderá ser acompanhado nesta segunda, 30, no Instituto Tomie Ohtake. Jo está no Brasil desde o início do mês e passou pela Festa Literária Internacional das Periferias, no Rio, deu uma oficina para dramaturgos no Núcleo de Dramaturgia no Sesi, em São Paulo, e apresentou seu espetáculo The Gospel According to Jesus, Queen Of Heaven (O Evangelho Segundo Jesus, Rainha dos Céus) no Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte.

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A peça conta trechos da vida de Jesus sob a perspectiva de uma transexual. No ano passado a montagem recebeu o prêmio Scotish Arts Clud de melhor espetáculo escocês. “A Bíblia diz que Jesus, como deus, veio ao mundo em um corpo humano e passou a viver como um de nós. Essa sensação de estar em um corpo estranho é a mesma dos transexuais.”

Nascido John, aos 14 anos o jovem começou a estudar teatro em sua escola. Foi ao interpretar papéis masculinos que ele percebeu um grande desconforto em relação a sua identidade e a ausência da sua “voz”. Uma solução possível foi desistir de ser ator para tornar-se romancista.

“Mesmo assim, o teatro continuava me chamando e inquietando.” Aos poucos, a transição de gênero ganhou força artística quando Jo mergulhou em personagens femininas. Ela lembra que sua Ofélia, em Hamlet, foi um sucesso. “Foi uma das primeiras vezes que vi o público apreciando um trabalho meu.”

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Hoje, Jo tem peças montadas mundialmente. No Brasil, The Gospel vai ganhar encenação com a atriz trans Renata Carvalho. A peça Every One, que narra a morte da esposa de Jo, em decorrência de uma câncer de cérebro, vai estrear no Japão ainda este ano.

À primeira vista, sua devoção pelo cristianismo pode parecer intrigante. A peça The Gospel According estreou em uma igreja da Escócia e a dramaturga sofreu ameaças. “As pessoas imaginam que não há preconceito na Europa, mas existe. Muitas pessoas não conseguiam compreender porque eu estava no palco falando as palavras de Jesus Cristo.”

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Jo ressalta que até mesmo Jesus escandalizou seus contemporâneos. Em um trecho da peça, Jo cita a parábola do bom samaritano, quando Jesus tenta explicar a um jovem quem era o seu próximo, a quem ele deve amar. No episódio, um homem está desmaiado na estrada. Pelo caminho passa um bispo e um policial mas nenhum deles ajuda o moribundo. “Mais um drogado. Não há nada que eu possa fazer”, eles disseram. No lugar do samaritano, figura odiada pelos judeus, Jo dá protagonismo a uma drag queen. “Ela viu o homem e pensou: ‘pobre coitado’. E chamou uma ambulância do seu celular e ficou ali com ele até a ambulância chegar.” O espetáculo retoma a passagem de Jesus até o momento da sua crucificação. E Jo logo cita uma figura brasileira, a transexual Viviany Beleboni, que desfilou vestida de Jesus crucificado na Parada Gay do ano passado. “Aquela imagem é importante, o Brasil é muito conhecido pela violência a pessoas trans.”

Aos 67 anos, Jo se arruma na cadeira. Sentada próximo à piscina do hotel, ela faz uma pausa para falar da família e busca algumas fotos em seu celular. Em uma delas, estão duas garotas sorrindo. “Eu sou o pai delas.” Em outra foto, suas duas filhas abraçam um garotinho. “Aqui, esse é o meu neto. Eu sou avó dele. Ser pai e avó é o meu maior orgulho,” diz enquanto sorri.

LGBT E A PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE NA CULTURA

Instituto Tomie Ohtake. Av. Brigadeiro Faria Lima 201, Pinheiros, 2245-1900. Hoje (30) 15h. Grátis.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.