Demorou, mas “A Tartaruga Vermelha” chegou ao Brasil, e via Mostra. O longa do holandês Michael Dudok de Wit passa neste domingo, 29, em diversas salas do circuito Spcine. O filme teve aporte do estúdio japonês Ghibli, de Hayao Miyazaki. Lançado no Festival de Cannes do ano passado, concorreu ao Oscar de animação, em fevereiro. Admiradores do mestre japonês terão um choque. De Wit distanciou-se um pouco, como é natural, do estilo gráfico da Ghiobli, mas manteve integralmente o tom fabular.
Um náufrago numa ilha. Ele se mantém pescando, enquanto tenta construir uma embarcação para enfrentar o oceano. Quando ele parte na sua jangada, ela é destruída – pela tartaruga vermelha do título. O filme é feito de silêncios. Prescinde de diálogos. O homem na natureza. A tartaruga. Dois solitários num mundo em desequilíbrio. Esse particular Robinson Crusoe aos poucos vai cedendo ao encanto do meio ambiente no qual se insere. É a história de amor de um homem por um cenário. A tartaruga vira mulher – na imaginação?
Há pelo menos outra grande animação na 41.ª Mostra. É “Loving Vincent”, coprodução anglo-polonesa, rebatizado como “Com Amor, Van Gogh”. O filme (no Frei Caneca 1, às 21h40) conta a história do pintor Vincent Van Gogh por meio de um estilo visual conceitualizado através de suas pinturas geniais. Nesse sentido, será interessante comparar a animação de Dorota Kobiela e Hugh Welchman com 24 Frames, o filme póstumo de Abbas Kiarostami. O filme do grande autor iraniano que morreu no ano passado é uma coleção de 24 curtas, de 4 e meio minutos cada um, que dialogam com imagens emblemáticas da pintura e da fotografia.
Com “Amor, Van Gogh”, narra a vida e morte do pintor por meio de sua obra – e das cartas que escreveu ao irmão, Theo. Datada do período entre 1873 e 1890, a correspondência – editada em livro, “Cartas a Theo” -, revela um artista atormentado, até porque produzia uma arte na contracorrente do academicismo de seu tempo. A visceralidade dos girassóis e dos ciprestes, como símbolos de vida e morte, transparece na escrita – e nas pinturas. Van Gogh expõe-se. Sua pintura, ele esclarece, parte dessa inevitabilidade da dor humana, e o que ele gostaria é que ela servisse de consolo para os miseráveis do mundo, entre os quais se incluía.
De volta à live action, pode-se começar por outro filme póstumo – como “24 Frames”. “A Telenovela Errante” – Cinesesc, 22h20 – tem a cara de Raul Ruiz, mas é assinado pelo cineasta que morreu em 2011 e por Valeria Sarmiento, que foi sua companheira. Um letreiro informa que Ruiz colheu esse material ao longo de muito tempo, com vistas a um aproveitamento futuro. Coube a Valeria selecionar, organizar e montar o material filmado. Ruiz foi um grande autor conceitual. Chileno, realizou um dos grandes filmes da história do cinema de seu país, Três Tristes Tigres. Exilado pelo golpe militar, instalou-se na França. Virou um cineasta prolífico, filmando sem parar. Sua obra nem por isso deixou de ser exigente. A Telenovela Errante parte de um pressuposto ousado. Para Ruiz, a realidade chilena nunca existiu, mas era um conjunto de (tele)novelas que envolvem disputas amorosas, por poder e até uma guerra.
Muitos críticos acreditam que Raoul (na fase francesa) Ruiz foi mais vanguardista que Jean-Luc Godard e o curioso é que estreou nos cinemas, em plena Mostra, O Formidável, em que Michel Hazanavicius, o diretor de O Artista, biografa Godard. Durante o Maio de 1968, ele se comporta como um pequeno-burguês ridículo, que perde os óculos – portanto, o foco da revolução nas ruas -, preocupado que está com o adultério da mulher, a atriz Anne Wiazemsky, autora do livro que deu origem ao filme. Em face desse Godard ficcionalizado, a Mostra apresenta um Godard autêntico, e portanto experimental. “Ascensão e Queda de Uma Pequena Produtora de Cinema” – segunda, às 19h45, na Reserva Cultural, Sala 2, foi feito para televisão, em 1986. Conta a história de um produtor dividido entre o desejo de agradar à mulher, que sonha ser estrela, e o famoso diretor com quem está trabalhando.
E ainda não é tudo. Jurado da 41.ª Mostra, o argentino Diego Lerman participa da seleção com “Uma Espécie de Família”, em parceria com a brasileira Bossa Nova Filmes. É um filme muito forte. Embora realizado por um homem, trata de questões femininas, e até feministas, viscerais. O desejo de uma mulher de ser mãe. Ela quer adotar esse bebê, tudo parece bem encaminhado, mas a situação complica-se. Não havia dinheiro envolvido, mas agora há. Ela tem de fazer apelo ao (ex)marido. A mãe biológica, o (ex)sogro, todo mundo é envolvido. O caso vira de polícia. A par da intensidade das paixões, a narrativa abre-se numa espiral, com acentos de pesadelo. O espectador começa a ficar inquieto. Como tudo isso vai acabar? Nesse sentido, “Uma Espécie de Família” é primo-irmão de “Aos Teus Olhos”, de Carolina Jabor, com Daniel de Oliveira condenado nas redes sociais pela mãe de um aluninho sob a acusação de abuso. A pergunta que não quer calar – como se termina um filme como o de Carol Jabor, como o de Diego Lerman? A resposta fica com o espectador. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.