A sordidez de Dalton Trevisan nunca finda

Dalton Trevisan aos 84 anos continua em sua caminhada diária pelas ruas da cidade, com seu par de tênis, boné esportivo, anotando movimentos e frases dos zumbis desavisados que nem sabem a razão de estarem neste mundo.

Eles podem não saber, mas Dalton sabe por que veio a este planeta. Ele veio para registrar esgares nos extratos subterrâneos da sociedade e esta gente não vai se livrar tão fácil assim.

A cidade, em alguns pontos, ficou bonita. Mas Dalton sabe, é tudo casca, superfície: o segredo está no subterrâneo, que é a casa e o espírito de cada um que mora na cidade.

A cidade, na essência, não passa de grande favela de primeiro mundo, com tipos tão sórdidos quanto antes, quando era uma província úmida de tipos lamuriantes. O que mudou foi o tempo e o clima.

Favela em pelo menos dois sentidos – a alguns quilômetros do centro verdadeiros quilombos formam a periferia habitada por pessoas que trabalham nas casas grandes do centro ou dos bairros nobres, ou para os donos destas. Quem não teve a sorte de servir, mergulha nas atividades alternativas que os donos das casas grandes classificam de “ilícitas”.

Algumas delas, românticas, como roubo. Em Macho Não Ganha Flor, o ladrão confessa: “Acho que sou o pai e o avô de todos os ladrões de Curitiba. E o mais azarado também. Já passei dos 70 e ainda na ativa”.

Ladrão pobre e sem aposentadoria. Previdência não aposenta ladrão. Quer dizer, não este tipo. Como se produz um ladrão? “Tentei todas as profissões: peão de trecho, montador mecânico, garçom, carrinheiro. Com a idade, veio a decadência. Sem trabalho, caí no crime”. Simples. “Nada cai do céu. Não vivi do trambique, mal sobrevivi dele. Senão já tava era morto de fome”. Roubar é viver.

Nos últimos livros de Dalton, o crack – ou craque como ele prefere – tem presença garantida. O craque pode ter invadido as páginas dos livros de Dalton, mas as ninfetas e os velhos tarados não bateram em retirada. Isto, não. Nunca, jamais.

Mais fácil o apocalipse desabar na Praça Tiradentes ou o dilúvio tomar conta do Passeio Público, que uma tragédia de tais dimensões cair sobre a Babilônia mais enrustida do planeta. A cidade é árida demais para um pobre tarado viver sem “mil e um ósculos de ninfeta libertina”.

Depois de Machão, vieram O Maníaco de Olho Verde e agora chega furtivo às livrarias o mais recente opúsculo do vampiro de Curitiba: Violetas e Pavões (Editora Record).

A nova safra não dispensa o tarado, o nanico: “Olhinho aceso pelas garçonetes e putinhas do Hula-Hula. Acertado o preço, vai com a peça ao hotelzinho suspeito da São Francisco. Priápico, vangloria-se do bom desempenho, a fama indiscutida dos anões”.

Não é preciso ficar nestes três últimos livros de Dalton para perceber que ele nunca se interessou por gente feliz. Gente feliz é chata e mentirosa. A felicidade dos felizes não passa de enganação, eles também são sórdidos, com seus golpes no erário, suas maracutaias, poses que escondem a pequenez de cada um.

Os tarados não são felizes ou infelizes, eles são apenas devoradores, que limpam os dentes depois de devorar cada caça, como os mais primitivos animais carnívoros. Se eles têm alma, a alma deles e de outros tipos que subjugam os fracos nos contos de Dalton não é uma alma perscrutável. Apenas intenções e ações.

A turma cujas entranhas emergem é a dos sórdidos de quaisquer naturezas. Isto explica o fato de Dalton não sair do território do conto e mesmo quando se arrisca é golpe falso, como no caso de A Polaquinha ou mesmo deste Violetas e Pavões em que os tipos de um conto pulam para as páginas de outro, naquilo que o professor Augusto Massi erroneamente denomina de “romance invisível”.

Não existem romances invisíveis: romance é ou não é. E os contos de Dalton também são ou não são. O fato é que ao escolher os sórdidos entre os tipos humanos, Dalton delimita o seu estilo.

Afinal, o romance requer nuanças, gente interessante e gente desinteressante, composições e murais para os O velho cruza a cidade de tênis e boné observando os zumbis que não percebem sua presença quais o escritor curitibano precisaria de duas ferramentas escassas em sua obra: uma galeria de tipos que fogem do combate vítima e algoz e narrativa menos frugal e mais opulenta que a sua e que se tornou marca registrada.

Por isso, foi mais natural ele se encaminhar na direção dos contos sumários, quase hais-cais, que na outra, das novelas robustas. Houve um tempo, distante, que se cobrava de Dalton o romance, como uma obrigação o trânsito por outro estilo literário.

Ele deve ter pensado e concluído que era melhor ficar por ali, na pequena área com toques curtos e arremates fulminantes para o fundo das redes. Escolha sábia.

Em uma entrevista antiga, há mais de vinte anos, ele definiu que seu romance era o mosaico de duzentos e tantos contos (na época). A incursão bem sucedida de Rubem Fonseca, outro contista brasileiro por excelência, pelo território do romance, por mais bem sucedida que foi, com grande habilidade e roteiros bem costurados, não é superior aos golpes letais desferidos no conto.

Fonseca, o grande, é o do conto. A escolha ficou mais fácil para Dalton por falta de alternativas. Era o conto ou o conto. Peças de teatro ou filmes que se façam sobre o universo dos personagens de Dalton, são obras feitas a partir do material consolidado no conto.

E até pela natureza deste gênero literário, curto e grosso, no sentido de breve e vigoroso, ele se configura em habitat mais natural aos personagens recolhidos nas ruas pelo escritor curitibano.

Os tipos de Dalton são desconfiados, mesquinhos, fugidios, de alguma forma condenados, sempre se escondendo dentro do conto, ao contrário dos tipos de Fonseca, que permitem aberturas de portas e portas, num labirinto sem fim.

Os de Dalton parecem sempre numa sala ou quarto, num escritório ou atrás da porta, numa cadeira, parecem sempre ignorantes da presença do leitor a observá-los. Os de Fonseca são quase exibicionistas.

Um quer mais é encerrar o assunto e cair fora e o outro é capaz de se expor por horas. A atmosfera dos contos de Dalton é quase sempre sufocante e há um clima de urgência, de desenlace iminente. É como alguém dissesse: “Riqueza não traz felicidade”.

E outro argumentasse: “E pobreza traz?”. Acabou. Falar mais o quê? A observação não comporta digressões e a resposta em forma de pergunta encerra o assunto. Como diz um personagem: “Te bate no pulmão. O bruto soco no coração. E o mágico tuimmm!”. Isto encerra tudo. Cara de haicai. O resto começa a ficar supérfluo.

Dalton mudou e continua o mesmo porque não foi ele quem mudou, mas os tipos no seu entorno. Se pegarmos um conto dos anos 60 ou dos anos 70, ainda é possível encontrar o cheiro de quartos mofados de uma Curitiba dos anos 40, ouvir o ruído de braguilhas abertas, sussurros, risos e choro.

Os contos atuais têm o desencanto das ruas, do craque, das Vilas Zumbis e outras vilas cheias de zumbis. O escritor acompanhou seus tipos no tempo, deixou a coisa rolar, não tentou segurar a barra e isto explica porque ainda faz sentido numa Curitiba tão diferente daquela dos anos 50, dos anos 60, dos anos 70.

Aqueles tipos, Mariazinhas e Joões, morreram, mas os filhos e netos estão por aí levando uma vida mais danada que a deles, tão ordinária quanto, a velha sordidez que não muda nunca. É com este barro que Dalton esculpe suas figuras e a quem ordena: “Fala, porra!”.

E elas, como golens angustiados, vão desfilando suas vidas sem sentido. Escritor cobra e elas lhes oferecem o que de pior há no homem, a sua existência miserável, porque esta é a única coisa verdadeira que pode haver. O resto é dissimulação.

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