Veio correndo logo que viu o carro. Colocou a pasta protegendo o cabelo da garoa, garoa quase chuva. Tadeu nem viu, a chuva atrapalhava a visão. A porta do carro trancada por dentro. Dani bateu na porta, Tadeu reconheceu a noiva. Abriu a porta rápido, Dani pulou para dentro do carro, sentou no banco, jogou as pastas que carregava no banco de trás: Um beijo rápido no noivo, Oi, meu bem. Oi, acabei de chegar, vamos rápido que com a chuva o trânsito está terrível. Já quase bati três vezes. Pessoal muito barbeiro…
As duas chegaram na pracinha bem cedo, o sol firme. Marilda ergueu a filha de dentro da carrinho. Carrinho de catador de lixo. Marilda era catadora de papel. Ergueu a menina e viu o rosto lindo contra o sol. Os olhos bem verdes do pai. O cabelo cor de palha contrastava com o azul, bem azul, dos céu de sol de inverno em Curitiba. Que linda, a Andressa. A coisa boa da vida de Marilda. Marilda queria que filha tivesse uma vida diferente. Tivesse chance, alguma dia. Nunca teria, achava. Por enquanto iam brincando. Andressa, nos seus quatro anos, não entenderia a angústia da Mãe. Marilda era a Mãe de Andressa, a segurança, o calor, o conforto. Em alguns anos, Andressa saberia que a Mãe era um ser miserável; que a Mãe vivia em condições subumanas; que a Mãe não tinha nada; que a mãe causava medo. Que a mãe sofria diariamente por não ter e por não poder dar para a filha tudo aquilo que gostaria de dar. Talvez, daqui algum tempo, até vergonha da mãe Andressa teria. Marilda tremia, sofria, só de imaginar esse dia chegando. Seria assim, sabia. Andressa teria vergonha do carrinho da Mãe, da feiúra da Mãe, da pobreza da Mãe, da sujeira da Mãe. Vergonha por não ter nada e por não poder ser nada. Nunca.
O casal no carro, a chuva engrossa. O trânsito parado, empacado. Um CD novo distrai o casal. Os dois falam inglês. Entendem a letra. Uma música de um cantora irlandesa, um jazz moderno, cool. A letra fala da pobreza das crianças na Afeganistão. Música gravada ao vivo. Um show em Paris. Vários artistas contra a pobreza no Afeganistão. Dani e Tuca prestam atenção na letra bonita.
Andressa tinha cismado que era uma princesa. Um dia, quando reviravam o lixo, acharam um livrinho no meio aos restos. Faltavam algumas páginas. As figuras bem bonitas mostravam uma princesa, vestindo cor de rosa, andando de carruagem: Quem é essa moça, mãe? É a princesa, filha. Pincesa? Princesa, filha. Então, eu também sou a pincesa. Marilda riu, beijou a filha. Os bracinhos da filha abraçaram a mãe. Então ta bom, você é a princesa. A mãe catava o lixo cedo, antes que as outras crianças chegassem. Não queria que as outras crianças vissem o que a mãe da Andresa fazia. A mãe da menina que tinha decidido ser princesa, e que, por enquanto, na doçura da sua infância, princesa seria. Catou o que dava para vender para o atravessador, guardou no carrinho. Encontrou uma caixa com três pedaços de pizza. Um dos pedaços meio comido, não tinha importância. Separou os pedaços de pizza. A pizza do lixo seria o almoço de Marilda e da princesa.
No carro, Dani comenta: Esses artistas são legais, nê? Fazem o show de graça, lá em Paris, a renda toda para essas instituições. Tuca: No CD tem a homepage da instituição. A gente podia ver como é que faz para contribuir. A sede fica em Londres, acho. Vamos colaborar? Acho que com o cartão, passando o número, já dá. Legal se todo mundo pensasse como a gente né, Dani? O mundo seria bem diferente. Coitadinhas das crianças. Essa guerra lá no Paquistão… Afeganistão, quer dizer.
As outras crianças chegam na pracinha. Uma pracinha pequenininha, entre o Juvevê e o Cabral. Chegam as oito, oito e meia. Andressa, pequenininha cumprimenta as que já conhece. Marilda fica olhando de longe. Fica longe das outras mães e babás que trazem as filhas e filhos para brincar na pracinha. Crianças dos prédios em volta. Dos prédios que geram o lixo que Marilda cata. Que consomem a pizza cujos restos cabem a Marilda. Andressa proclama: Eu sou a pincesa! As outras menininhas gostam da brincadeira. Então ela é a princesa. Outras menininhas decidem ser princesa também, uma Branca-de-Neve, até uma pequena sereia surge. Todas as menininhas são o que querem ser. Algumas crianças não participam da brincadeira. As mães não deixam. Nem passa pela cabecinha loira de Andressa ser ela a razão da proibição. Ela o medo de doença, de piolho, de realidade. As mães com medo da pobreza da Andressa olham de longe, comentam, a cidade está um horror! Essa maloquerada! Daqui a pouco não dá mais para tirar as crianças de casa!
Dani está orgulhosa do noivo. Ele vai contribuir para a ONG das crianças vítimas da guerra. Quer contar para as amigas. Tomara que mandem um adesivo, carteirinha, crachá para mostrar. Está louca para chegar em casa. O dia fechou de repente, saiu de casa com roupa de verão. Quer chegar no apartamento quentinho. No inverno, em Curitiba, a noite cai cedo. Seis horas, escuro total. Dá vontade de chegar em casa. Tomar um banho quente. Tuca ainda vai ter que sair, voltar para o escritório.
As crianças vão embora da pracinha. Meio-dia. Andressa: Mãe to com fome! A mãe pega a pizza fria, entrega um pedaço e meio para a filha. Marilda fica com o pedaço meio comido. O tempo começa a fechar. As quatro estações diárias de Curitiba. O verão virou outono. Promete virar inverno até a noite. Nuvens carregam o céu. Chuva fina. Comem debaixo da garoa. A chuva começa a engrossar: Entre no carrinho, Andressa! A menina escala o carrinho, senta em cima do papel todo. A mãe puxa o carrinho. Na marquise não dá para ficar, diz o porteiro. O pessoal do prédio reclama. Cobre a cabeça, menina, vai pegâ uma gripe, ralha Marilda. Andressa cobre a cabecinha loira com um pedaço de papelão. Imagina uma coroa. O porteiro fica com pena da mulher puxando carrinho. Sai do prédio na chuva: Olhe, encostem ali. Ali, ao lado da garagem. O pessoal do prédio não vê. A síndica…Fiquem ali, do lado da garagem. A garagem. ao lado de um prédio em construção. A chuva não molha a filha ou a mãe. A humidade gela. Muito frio. Andressa, a princesa, embrulhada em papel e plástico. A chuva não vai parar tão cedo. Ficam as duas lá. Marilda se distrai penteando o cabelo da filha. Andressa, a princesa da pracinha, fala sozinha, enquanto Marilda penteia os cabelos lindos. Dedilha os cabelos com carinho. A princesa falando sozinha com toda a sua corte imaginária, com seu súditos sente o carinho dos dedos da mãe. O dia vai passando assim. A noite chega os moradores do prédio voltam para casa. A garagem engole um a um os carros que encostam no portão automático. A princesa e Marilda imperceptíveis.
Dani e Tuca vencem o trânsito. Chegam no Juvevê, menos movimento. Tuca encosta o carro no Portão. Dani olha Marilda e a princesa. Dani enxerga aquilo que aprendeu a enxergar. Duas cidades se encontram. Duas Cidades que se temem. A cidade de Dani e Tuca. A cidade de Marilda. Dani teme Marilda. Dani, que tem pena das crianças na Ásia, não vê Marilda mãe protegendo da chuva a princesa de papelão. Dani vê o medo: Tuca, cuidado, olhe ali, encostado no portão da garagem, cuidado, deve ser assalto, entre rápido. Tuca olha rápido, localiza o carrinho, o portão mal abre inteiro o carro entra na garagem. O casal idealista escapa do Mundo real. Tuca: Melhor chamar a polícia, sei, lá, achei meio esquisito aquele pessoal. Marilda e a princesa viraram um pessoal.
A princesa de papelão continua sua conversa imaginária. Marilda escova os longos cabelos da filha. A chuva não desiste. Uma sirene, a viatura da polícia. Marilda teme, tem medo da polícia. Nunca fez nada errado mas teme mesmo assim. A polícia. Os policiais descem do carro. Mão na arma. Marilda olha para baixo. Guarda a escova. A princesa sente o nervosismo da mãe: O que vocês estão fazendo aí, Dona? A chuva, a menina, não quero que se molhe. Fique doente. Tâmo esperando passar. Um policial olha o para o outro. Não tinham visto a princesa, tão escondida estava no papelão e no plástico. Não é nada. Estão acostumados com chamados como esse. O medo chamando.
Um dos policiais tem uma filha da mesma idade da princesa Andressa. Sente saudade na hora, uma saudade louca da filha. Sente pena da menininha, enrolada no lixo. Vivendo no lixo: A chuva não vai parar. Melhor ir, a menina não pode ficar assim, no tempo. Não esperam a resposta de Marilda. Escolhem a solução: Vai pra onde, dona? Vila das Torres. Deixe o carrinho. A gente leva. Marilda entra no carro com medo. Um medo instintivo de tudo que é, de tudo que representa o mundo que a exclui. O policial pai simpatiza com a menina. Abre a porta do carro fazendo um mesura. Sorri para a menina. Princesa Andressa sorri com os olhos verdes. Vai sentadinha, comportada. O policial: Agora, vão escoltadas até em casa! Andressa nunca tinha entrado num carro. Os policiais são gentis. O rádio faz um barulho que deixa Andressa curiosa. Uma voz chiada. A menina não entende, acha graça, sorri. O policial pai estica o braço para trás e brinca com a menininha. Cócegas e gargalhadas. O carro vai rápido. Os olhos de Andressa enormes, as luzes da cidade fundem-se na velocidade da viatura. Por qualquer razão, ligam a sirene. Os carros abrem caminho para a princesa passar. Vão, vão indo. Chegam na vila. O carro vai entrando. Virá aqui, oh. Agora, nesta rua, indica Marilda. A viatura estaciona em frente ao barraco de Marilda. Uma toca miserável. O policial pai sente mais saudade ainda da filha. Um nó na garganta. Ajuda a meninha sorridente a descer da viatura. O policial pai sorri para Andressa, abaixa, fica na altura dos seus olhos. Beija o rosto da menininha e se despede: tchau, princesa! Se cuide nesse frio! Andressa arregala os olhinhos de mar. Olha para Marilda: Viu mãe, sou pincesa mesmo! O guarda disse! Marilda não responde. Aquela noite, Andressa dorme sonhando com castelos, torres, cavalos, reis e rainhas. Sonhos de uma princesa de papelão.
Aristides Athayde é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce
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