O cubano Alberto Korda ficou conhecido no mundo inteiro por ser fotógrafo oficial da revolução cubana e por fazer uma foto a que deu o nome de “Guerrilero Heróico”. A foto não foi sucesso imediato, até porque não era o objetivo. Ela mostra um homem de boina, olhar altivo, cabelos longos, barba no estilo Jesus Cristo. Não fosse boina e farda, qualquer apóstolo distraído seguiria o guerrilheiro pensando ser um novo Cristo. Para a esquerda latino-americana, era. Seu nome, Che.
A foto teria o mesmo destino de outras, um livro de história, não fossem dois episódios, um seguido de outro. O modelo da foto morreu abatido na selva boliviana, em 1967, doente e faminto, depois de tentar conquistar o país numa ação equivocada. Em conseqüência, um editor italiano de tendência esquerdista recortou as bordas da foto e estampou em camisetas, como forma de protesto ao imperialismo, guerra do Vietnã, estas coisas. A decisão tomada às vésperas das agitações de 1968 transformou Che Guevara em ícone acima das ideologias, num mito fashion e pop. Ele entrou na ordem do dia e não saiu mais.
A foto de Che serviu de inspiração para artistas (Andy Warhol já havia faturado em cima dela) e se tornou das mais reproduzidas de todos os tempos. Nem Greta Garbo conseguiu tal projeção, talvez Marilyn Monroe. Mas quem era Che? Ernesto Che Guevara era argentino inquieto, formado em medicina e quando jovem montou numa motocicleta Norton 500 barulhenta chamada “La Poderosa”, cruzou a América do Sul, escreveu diário que virou filme do brasileiro Walter Salles.
Adulto, conheceu no México o advogado cubano Fidel Castro. Os dois combinaram de derrubar o ditador cubano Fulgêncio Bastista, um mulato tirânico, corrupto, repressor, apoiado pelos Estados Unidos e que estava no poder desde 1933.
E não é que os dois tiveram êxito? Em 1959, mandaram Fulgêncio se aposentar na Ilha da Madeira. E de quebra fizeram uma série de mudanças em Cuba. As que ganharam mais repercussão na imprensa mundial foi o uso da cor cinza nas roupas, o hábito de fumar charuto e mais: os cubanos, bem antes de Beatles e Rolling Stones, rimaram ideias longas com cabelos longos. Tudo ajudou a botar Che Guevara na lista dos mitos do século 20.
Aí alguém pergunta: por que ele e não Fidel? Por várias razões: Fidel era feio, não sorria, falava muito, não era argentino e deixou de ser romântico assim que tomou o poder. Ninguém gosta de um tipo assim. Che era o oposto de Fidel, estava sempre pronto para uma aventura. E ficou com o troféu de mito. Para o qual contribuiu a morte na Bolívia e a foto de Korda.
Depois da morte de Che, jovens do mundo inteiro não se cansaram de ostentar a foto que Korda fez, em protestos, camisetas e paredes de seus quartos e salas dos diretórios acadêmicos. Isto garantiu a sobrevivência do mito. Outros rostos apareceram para denotar frustração com o capitalismo, o imperialismo, o fascismo, liberalismo, estas coisas que continuam a ser praticadas, mas sem os protestos de outrora. Eram rostos de Karl Marx, Mao Tse Tung, Lênin, entremeados com alguns líderes locais, nem sempre charmosos, como Ho Chi Min, Agostinho Neto e Salvador Allende.
Ninguém hoje olha para um cartaz de Karl Marx, se é que tem por aí. Ninguém carrega a estampa do velho em passeata, a Rússia nem troca o terno da múmia de Lênin na Praça Vermelha e de Mao não se fala nem bem, nem mal. Mas, Che, que coisa! Está inteiro.
Ele não deixou de ser mito, embora o confuso legado teórico hoje em dia não seja levado muito a sério, a não ser por grupamentos radicais. A foto e a frase -Hay que endurecer, pero sin perder la ternura – resistem mais que velha calça desbotada de jeans.
Esta parte da vida de Che, muitos sabem. A sua vida privada poucos sabiam. Agora, quem quer conferir o homem, em sua privacidade, pode ler de fonte direta, a patroa dele. Aleida March acabou de lançar no Brasil um livro (Evocação, Minha vida ao lado do Che, Editora Record, ,237 pags, tradução de André Oliveira Lima) para falar dos anos em que viveu com ele. E todos ficam sabendo que além de revolucionário e aventureiro, dos mais conceituados em seu ramo, Ernesto Che Guevara foi conquistador (da mulher amada), amoroso pai de família, destes de tirar fotos da patroa com os filhos, entre um tiroteio e outro em lugares distantes do planeta.
Aleida, cubana de origem espanhola, camponesa bonita de olhar penetrante e expressão forte, também fala de sua vida: estudou na escola normal, virou revolucionária, conheceu Ernesto aos 22 anos, conquistou e foi conquistada e com ele teve quatro filhos. Ela conta que além de revolucionário em tempo integral, Che Guevara foi daqueles maridos de bom humor que mandava cartas e cartões de todas as partes do mundo, onde tentava vender o peixe da revolução cubana. E isto ajudava a remendar as longas ausências.
Se for resumir a coisa, é isto. Não fala de estripulias revolucionárias e conspirações. Muito menos revelações sensacionais. Quem leu um pouco sobre Guevara não vê novidade. E aqueles que adoram intimidades, coisas afetivas, inconfidências, tirem o cavalo da chuva. Aleida respeita a memória do marido e não entrega detalhes que cairiam de bom agrado aos olhos de burgueses devassos e decadentes. Ela nem diz a cor da meia dele. Ava Gardner que dormiu com Fidel algumas vezes contou que ele usava uma meia diferente em cada pé. Não tem importância, mas é engraçado.
Além disso, o livro de Aleida carrega tom respeitoso por Cuba, Fidel e os companheiros de Sierra Maestra. Não crítica o regime cubano, nem aponta em que curva a revolução pipocou. Quando fala da ilha e da revolução, adota um fiel tom oficial. Afinal, Aleida foi deputada do Grupo Interparlamentar na Assembléia cubana e nutre por Fidel respeito tão fiel quando o de Fidel pelo seu antigo companheiro de guerrilha.
Assim, qualquer sujeito, indaga: “Caramba, se não tem sacanagem, não tem novidade, não tem critica, a mulher só fala dele como o marido exemplar e pai nota dez, qual a graça do livro?”. Na realidade, o livro não tem graça. Visto por este ângulo, pode ser considerado chato. Mas tem coisa. É o livro da dona que teve quatro filhos com Che Guerava. Além dela, nenhuma conseguiu a proeza. Ela tem coisa para dizer: o problema é se o leitor está interessado em saber.
Afinal, os fatos de ela criar os filhos de Che, de Fidel fundar o Centro Che Guevara em Cuba, de a ilha reverenciar até hoje a imagem de Che, estas coisas não chegam a surpreender e tem interesse limitado. Ao final, o leitor fica com a impressão estranha de que Che não foi mito, foi um cara normal como qualquer outro, até meio careta, com a diferença de ter entrado num ramo perigoso e, pior, quando os negócios estavam dando certo, em vez de faturar a coisa como fazem hoje muitos camaradas do PT, que usam ternos azuis e ficam parecendo pastores evangélicos, ele resolveu investir em filiais no Congo e na Bolívia. E, pior: quebrou a cara.
Enfim, a história do Che da foto sugere um mito pop, talvez turbinado por esta vocação do sistema de criar mitos e faturar em cima deles, mesmo revolucionários. A história do Che de Aleida é como daquele caixeiro viajante que se despediu dos filhos, foi vender revoluções mundo afora e acabou fuzilado por alguns clientes insatisfeitos. Uma morte trágica, claro. Mas, em casa, ele sempre foi o Sr. Ernesto Che Guevara, marido de dona Aleida March e pai de Aleidita, Camilo, Célia e Ernesto. O filho mais novo, então, a cara escarrada do pai. Que aprenderam a lição e não se meteram em encrencas na Bolívia. É uma versão que não alimenta o mito, mas não deixa de ser verdadeira. Fazer o quê!