Prólogo
Antes da metade do século de crises e das maiores tragédias mundiais, uma cidade alteada nas colinas apontava para a nova civilização do terceiro milênio. De lá a vislumbrávamos.
O Romance
Com a intensificação da miscigenação pelas levas de imigrantes de toda parte do mundo, formava-se sob O Cruzeiro uma nova civilização. Com tinta de pau-brasil descrevo-a em romance. Existe superficialidade em muito da literatura. Para que seja um bem maior é preciso ir a fundo e escrever a história e o mundo na vida, interpretá-los; revelar a evolução. Por mais longo que seja o tempo em que se passa a narrativa, vou comprimi-la no papel para ligar fatos essenciais ocorridos na época. De uma nova civilização os sinais são evidentes. Vou falar do legado de índios e escravos negros que ao cruzarem com brancos, geraram os caboclos e mulatos; da riqueza de alma com todos repartida. Gente provada para a destinação, acolhedora e eclética, afortunada de sabedoria. Interpretar-lhe os sentimentos, o ideal, creio que só é possível em romance. A tarefa, todavia, não é fácil. A dificuldade está em que não se trata de, simplesmente, imaginar casos, criar um enredo, armar tramas, entretenimento com erotismo, o chocante. Uma narrativa de exegese terá de ser, necessariamente, entremeada de reflexões, divagações esclarecedoras. Não creio na violência ou em más-paixões como fatores que determinem a história, mas sim na paz e nos bons sentimentos das pessoas. Quero demonstrar que não são nem os chefes, os poderosos, que fazem evoluir o mundo. Muito menos as guerras, todas elas barbáries. Só a paz pode ser justa, só a paz é santa… Os verdadeiros heróis são muitos, ainda que humildes e na obscuridade, formando famílias, grupos de pessoas generosas. Muitas vezes não percebemos, mas vivemos entre eles. Fazem parte professores, empregados, camponeses, operários, médicos, mendigos, soldados, carroceiros, colegiais, funcionários, seja lá quem for de bons sentimentos. Uma plêiade evolucionária é que transforma e melhora a sociedade. Nesta é típico o caboclo, o primeiro dos mestiços. O filho da índia e do sertão que o tornou contemplativo. As manhãs de paz, o despertar com o sol abrindo as asas de luz, o gorjeio e o revoar da passarada. Doa-lhe tudo a natureza, por isso crê e luta conformado. Do rancho assiste deslumbrado ao crepúsculo e, à noite, enamora-se da lua. A canção mostra-o dolente apenas no amor:
“E quando no terreiro faz noite de luar
e a saudade vem me atormentar,
eu me vingo dela tocando viola
de papo pro ar.”
Pode-se vê-lo ensimesmado, as vistas perdidas no horizonte… Em conjeturas.
É um romance realista, também de cisma e sonho, a personagem é antes de tudo humana, solidária, até mesmo um herói anônimo. Interessado no bem, um evolucionário. A história não é de tramas e aventuras, mas de conjeturas, também sou caboclo de vistas perdidas no horizonte. A seu modo, você poderá imaginá-la, as personagens, inclusive seus atos e diálogos, assim como se entendiam enamorados Nelo e Jussara. Não preciso relatar as vezes em que trocavam juras.
Meu conto é também da infância quando se gravam as impressões e – não sei como – a apreensão de seus significados. Em meu caso, talvez por querer bem as pessoas sem distinção e admirá-las. Entendia o gesto, a palavra, um olhar, um riso, uma lágrima, o porquê delas. E não fui o único. Percebia-se que da simplicidade no viver procedia tal saber. Quanta grandeza nos mais humildes! O ambiente favorecia a compreensão e até uma intuição premonitória. Na adolescência já se estruturava e se desenvolvia o ideal de toda a existência. Concorria para uma filosofia de vida a marca do povo: a boa-vontade. Um quê de essencial parecia inato nas pessoas, em certos grupos e famílias. Com certeza são os bons que guiam a humanidade. A bondade é a força do espírito. São daqueles que têm humildade as lições de vida. Estão quase sempre na linha de pobreza, são heróis anônimos salvando o mundo. Há plêiades de gênios que transformaram o mundo, não casualmente concentrados numa Atenas, Roma, Florença, ou em França. Não é menos significativa a presença de guias populares na comunidade. São eles os artífices da nova civilização… É o seu humanismo que se expande pelo astral. Um saber sublimado pelo amor, um humanismo em que há júbilo, beleza, verdade e poesia. Diferente da simples erudição dos doutos. Do saber destes, diz o pregador Eclesiastes: “Há muito enfado, causa tristeza e desgosto”. O bem nasce no coração, e aqueles que ontem e hoje ainda são plebeus, humildes e oprimidos, mais o sentem como a necessidade de justiça e de liberdade na busca da felicidade. Não representam nenhuma classe social, mas sim o humano, e exercem a maior influência numa filosofia que pode ser caracterizada como plebéia. Uma filosofia de benfeitores da humanidade.
Vou falar de personagens como se falasse de mim, são amigas, pessoas de que gosto ou, senão muito as admiro, compreendo-as. São elas próprias e não heterônimos. Pouco vou dizer de mim senão choro de orgulho e saudades de irmãos e de meus pais. Direi de personagens, a maior parte generosas. Não galgam posições tornado-se famosas, reverenciadas. A sua prática caridosa é do tamanho daquela “da viúva e seu óbolo”. Aqui procuro destacar o bem que a mulher representa no mundo. Não vou falar dos considerados “grandes homens” embora entre eles haja os benfeitores. Há senões que obstaculizam as ações generosas. As barreiras são de egoísmo, vaidade, presunção e orgulho. Embora não o creiam os presunçosos, são homens comuns, os mais humildes que, menosprezados e no anonimato, dirigem a humanidade.
Nelo tinha dons inatos, nascera evolucionário, aquele que promove o bem. Apresentava acentuada “aura infantil” que o marcaria indelevelmente. Uma criança mais dócil, de palavras suaves. Dir-se-ia de um saber pretérito a revelar-se concomitante. Advinham-lhe inspirações das profundezas da alma, que esta elaborara o cérebro para servir-lhe de instrumento. Para tanto houvera transformado até mesmo peculiaridades hereditárias.
O saber parecia inato. Nem todos percebiam a aura infantil que o levava a uma fuga, qual se flutuasse num mar de sonhos e sempre encantado com qualquer novo aspecto do mundo exterior. Uma estrela no céu, um caco de vidro colorido, um cisco no chão. Ele provocava pena, ternura. E diziam: “Tem a cabecinha nas nuvens”. Passara dos quatro anos de idade e sobre si ainda fluía a influência dos céus, a qual ainda persistiria o resto da vida. Ora, o maior dos sábios pode aprender com uma criança. Uma criança é criança como todas as outras. Que bom se os homens fossem assim e lutassem contra forças desagregadoras que indispõem uns contra os outros, obstaculizando-lhes a felicidade. Certamente serão assim, formando plêiades evolucionárias em torno de um Nelo, já adulto, mudando para melhor o mundo. As verdadeiras fontes dessas plêiades são femininas, as mulheres. É muito cedo ainda para falar de Jussara, preciosa Jussara que será menina, encanto do povo… Que dizer do dom divinal da mulher, anjo da guarda terreno que, além da proteção ao ser inocente e indefeso de seu ventre, une com seu amor os homens em família? Nada se lhe compara aos primores. Em Jussara esparzia a beleza natural A atração que aproximasse Nelo de Jussara, apesar do fascínio, jamais poderia ser entendido como um acaso. Juntos ainda removeriam barreiras que empanavam o brilho da cidade sol. Então evito diálogos comuns ou superficiais para dar ênfase a palavras como de Nelo ou Jussara que foram pronunciadas em certos momentos, necessárias no início de uma nova civilização.
A criança também aflora em mim agora para dizer da maior importância do homem simples, comum, que sem se dar conta faz parte das plêiades. É você que com dignidade rega a terra com o suor de seu rosto, dá o pão e o teto, tudo constrói e até o coração oferece ao mundo. Você é o amigo, aquele que pode ser feliz sem galardões, poder e riqueza, mesmo injustiçado. Melhor me compreende você mulher, a mãe: você um pai. Você que é honesto e bom, branco ou negro, o índio, mestiço, não importa se pobre ou rico. Há dignidade em cada ser humano. Para mim são vocês que fazem de verdade a história, como Deus a quer escrita. Não vou inventar reis, príncipes, carochinhas, nem personagens corruptos cujo orgulho e ambição gerem desgraças e miséria. Quero exaltar amigos reais como você que enfrenta as vicissitudes, batalha contra forças opressoras. Quero amá-lo com este livro à mão.