A Menininha dos Olhos de Chuva

Que menina bonita, foi assim, a moça no carro disse. Contou para a Iara. A amiga, a companheira de sinaleiro. Maloquerinha que nem ela. Fazia tempo que não ouvia nada de bom. Desde que ela e a irmã tinham ido morar sozinhas. Com uma amiga da irmã. Agora, estava mais sozinha ainda, nem a irmã tinha. Nem Pai, nem Mãe. Tinha saudades da irmã, do jeito o que era antes, de tudo como era antes. Quando moravam todos juntos, antes de se mudarem. Pobres sempre tinham sido. Ficou pior. Antes, alguma coisa ainda tinha. Não tinha mais nada agora. Nem ninguém. Entendeu mais ou menos a briga em casa, a Mãe perguntando: Como? A prestação do lote? O Pai justificava, tentava. Vergonha na resposta: Não sei nem avisaram, me mandaram embora, pronto. O Pai vinha bebendo antes de ser mandado embora. Ficou pior. A Mãe foi embora dois meses depois. Uma segunda. De noite, ouviu gritos, a Mãe pedindo, pare, o Pai xingando, batendo. Ela e a Rosinha, juntas, abraçadas, na cama que dividiam. O Pai, xingava. A Mãe repetiu: O que é isso, pare, enlouqueceu? Dia seguinte a Mãe tinha ido embora. Rosinha disse, ela vai ligar, ela foi prô Vó. Um dia Darly sabia que a Mãe ligava. Ela ia contar, então, o que a moça do carro tinha dito.

Não reclame. A Paula tinha vontade de comer abacaxi no meio da noite. Madrugada. Eu tava quase pegando no sono, é isso. Por isso que eu falei, pronto. André beija a esposa. Não fique braba. Letícia sorri. Aperta forte a mão de André. Quero verVou começar a querer abacaxi, aí sim, quero ver reclamar! Pronto já chegamos. Tinha que ser aqui? Tinha. Engraçado esse negócio de desejo de grávida: Bomba da Familiar. Amor, desejo é desejo, não adianta. Chegam na confeitaria, Rua Rocha Pombo. Moram no Batel. Atravessaram a cidade.

A casa da amiga de Rosinha ficava no Tatuquara. Antes moravam na Vila das Torres. Gostava mais antes, do lote antigo. Sairam pra longe, pro outro lado, pra longe do Pai. Bebeu mais depois que a Mãe saiu. Um dia, disse que a Rosinha estava linda. Falou de um jeito como nunca tinha dito. Falou bêbado, continuou elogiando. Puxou a Rosinha. Para Pai, pare! Ele bêbado demais. Darly entendeu mais ou menos. Rosinha disse: Eu vou embora dessa casa. Esse velho bêbado, tarado. Chorava de raiva. Darly concordou, ainda sem entender, concordou. Foram embora naquele dia mesmo.

Uma amiga lá do prédio, trabalha lá. Disse, quando quiser venha para cá. Pra lá que nós vamos. Lá, no Tatuquara. Atravessaram a Cidade, na mão as mochilas e as sacolas de plástico com tudo que tinham. Tudo bem pouco. Darly foi chorando no ônibus. Chorando assustada, sentindo o nervosismo da irmã. Ela, a Darly, com sete anos até que chorava pouco. Chorava às vezes de saudade da Mãe, do jeito que o Pai era. Já tinha chorado de fome, depois que mudaram, ela, a irmã. Agora chorava de medo. A Rosinha acabou mudando também. Chorou de medo de perder a Rosinha. A Rosinha começou a falar diferente, vestir umas roupas diferentes. Ainda elogiava a Darly, que menina linda, erguia a Darly no colo. Passou a elogiar menos. Chorava mais. Um dia, chegou em casa toda roxa, um dia, ela e a amiga fumando aquele cachimbo de vidro. Ficavam lá e saiam. Atrás de dinheiro. Começaram a esquecer de Darly aos poucos. Foram esquecendo, esquecendo, esquecendo. Vai pra Rua você também, disse um dia a amiga. Ela não, ela ainda é muito nova. Vão prender. Vai, fica só no sinaleiro.

Aquele dia, Darly ficou no sinaleiro. As duas não voltaram. Prenderam, disse a vizinha. Vai tê que voltá pro teu Pai. Não sabia voltar, nem que quisesse. Sabia onde ficava o sinaleiro. Para lá foi.

Pronto, comeu sua bomba. Quatro? Cê não sabe a fome que dá ficar grávida. Passe alí no Blockbuster, pegar um filme. Deixe o vidro aberto, estou com calor. Tá um frio louco, cinco graus, eu vi! Só um pouco, só para ventilar o carro. Pare aqui. Cê pega lá?

O sinaleiro agora era a casa de Darly. O sinaleiro e o estacionamento das lojas da frente. Dela, de outra menina, de um menino que às vezes aparecia. O Piazinho. A menina mais velha que ela, a Iara. Ela e a Darly alí, o sinaleiro na Rocha Pombo. Quando chovia, ficava mais no estacionamento. Um lavanderia, sabia, a moça loira tinha dito, entrava bastante gente lá. Do outro lado, um cinema, achava que era. Alguma coisa de filmes. Nunca tinha ido em cinema, não tinha como não confundir. Um monte de gente. Chegava junto nos carros estacionados: Tio, dá um trocado? Chovia, ficava, encostadinha na parede. De noite, no beiral. O outro segurança não deixava. Esse tinha pena. Fingia que não via. O Gerente dizia, chama a polícia, o segurança não chamava, o gerente não chamava, às vezes alguém, um cliente fazia alguma coisa. Darly ia ficando por lá, quando o carro da polícia chegava escapulia, tinha aprendido a fugir. Fugir devia ser melhor.

Oi Tia, tem um trocado? Que susto menina! Como é que é teu nome? Darly. Cadê tua Mãe. Num sei…Teu Pai? Num sei…Sabe nada? Sorriso banguela. Sabia que você é uma menina muito linda, esse olhão cinza? Parece até um céu de chuva. Darly sorriu. Quero ver a banguela! Darly sorriu, riu agora, gargalhou. Sabia q´eu tenho um neném aqui, na barriga? A Menininha dos Olhos de Chuva coloca na boca os dedinhos. Arregala os olhos. Viu? Na barriga. É uma menininha, a Manuela. Tia, tem um trocado? Hein Tia? Uma moedinha. Ó, aqui, um doce pra vocês, dividam aí, sem brigar. Um outro carro saindo. A Menininha dos Olhos de Chuva agarrou o doce, saiu correndo. De longe, a voszinha, fininha: Tio, uma moedinn…

Achou o filme? Precisa ver, uma menininha, coisa mais linda. Um olhão de um cinza! Pena, se tivesse nascido, sei lá, numa família. Era capa de revista, dessas, de criança! Fica aí, no Block, pedindo. Você fica toda emotiva, agora grávida. Não sei, acho que dá pra ver umas coisas. Que antes a gente não vê. Viu o céu, que lindo? Vai cair um toró? Vamos pra casa, rápido, antes que comece essa chuva forte. Elogiei tanto a menina. Não sei se ela prestou atenção. Queria alegrar, deu vontade. Vi aquele olhão, pensei na Manu, logo aí, nascendo. Tanta coisa. Será que amanhã faz sol?

Aristides Athayde é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

aristides@aristidesathayde.com.br

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