Leio só agora e, portanto, tarde, muito tarde – mas antes tarde do que nunca – um livro simplesmente admirável, na sua integralidade significante: Diário completo, de Lúcio Cardoso (1912-1968).
Estou convencido de que se trata se uma obra-prima do “diurnalismo” brasileiro. (Penso que o neologismo anterior, entre aspas, tem boas razões de natureza morfológica e semântica para ser aceito sem relutância. Sem esquecer que, a rigor, o diurnalismo, derivado de “diário”, nada mais é do que uma espécie de memorialismo – escrito no presente. Já o memorialismo propriamente dito garimpa no passado, nas minas largas da memória, as suas pepitas. Sejam elas factuais ou pensantes.)
Penso que este diário só perde para os de Miguel Torga e Ascendino Leite apenas num aspecto: o tamanho. Esteticamente, creio que ele tem a mesma envergadura dos dois mestres citados.
A obra luciana, em que a profundidade reflexiva e confessional coexiste com a arquitetura por assim dizer ideológica (não no sentido político, é claro) e a fulguração mágica do estilo, tem algo de um painel em que predominam as cores sombrias de Albrecht e Dürer, ou o “chiaroscuro” de Caravaggio e Rembrandt.
O diário do artífice de Maleita, Crônica da casa assassinada e A luz no subsolo, que Otávio de Faria chegou a considerar, nos idos de sessenta, “o maior dos nossos romancistas vivos”, revela ao leitor atento um belo e denso itinerário espiritual, a par do périplo existencial, além de ser um precioso inventário de pensamentos, emoções, sentimentos, angústias e perplexidades que atormentam a condição humana.
Chega-se a ter a impressão, em algumas passagens do Diário completo, que o autor está realizando uma espécie de “strip-tease” da alma. Sem falsos pudores. Sem fingimentos de qualquer espécie, como fizeram por vezes Pessoa, Wilde, Genet e outros.
Mas, para lá da intrínseca grandeza interior, o diário luciano exibe algo não menos valioso: a reverberação emblemática da epiderme textual, que faz da obra – também – um paradigma de modus faciendi literário. Pretendo voltar oportunamente, deo volente, a este diário fascinante e enriquecedor. Por ora, quero fixar-me apenas num episódio interessante que Lúcio narra, com a écriture típica do ficcionista, numa nota datada de 14 de agosto de 1949. Ela refere-se ao encontro que manteve com o grande romancista e dramaturgo católico francês George Bernanos, autor insígne, entre outros livros, do Diário de um pároco de aldeia, Sob o sol de Satã e Diálogo das carmelitas.
Dou a palavra a Lúcio Cardoso: “(…) Foi nesse dia que, regressando sob uma tempestade que combinava perfeitamente com os gestos largos e as invectivas do escritor, ele ia pelo caminho maldizendo a chuva e o vento como se fossem seres vivos, acusando-os de não sei que imaginários crimes, tudo isso entremeado de críticas rápidas e fulgurantes a escritores e artistas do seu tempo. Quando chegamos ao nosso destino a chuva havia passado. Bernanos, já indiferente à marcha da tempestade, falava agora sobre romancistas. Lembra-me perfeitamente a sua figura, de pé no passeio, apoiado à bengala. Na verdade, era majestoso na sua cólera transparente – e, afrontando-o, ousei perguntar-lhe qual era, na sua opinião, o maior romancista francês. Durante um minuto, em silêncio, vi que olhava a noite fria em que ainda vagavam uns restos de tormenta e, depois, numa voz firme, vibrante, onde havia toda a paixão de uma escolha feita com meticulosidade e carinho, ele respondeu-me: “Balzac?”. Até aqui, o texto de Lúcio.
Provavelmente, ao formular a sua indagação, o mineiro-carioca talvez esperasse outro nome como resposta. Flaubert? Stendhal? Sobretudo, Proust? Romain Rolland ou Roger Martin du Gard? Mas não. Bernanos preferiu o nome do gênio criador da Comédie Humaine. Dando mais uma vez razão ao conspícuo Brunetière: “Balzac c?est le roman même”.
Confesso que eu próprio, no fundo da cripta da minha insignificância pensante, em cima das sandálias franciscanas da minha inexpressividade, há muitos anos comungo desse ponto de vista. Lembro que, num livrinho que editei em 1988, Presença de Balzac – notas de um diário, contendo textos escritos nas duas décadas anteriores, se encontra por mais de uma vez essa afirmação peremptória, coincindindo com a de Bernanos.
Hoje, vou mais longe: Balzac disputa o título de “primus inter pares” a Dostoiewski, Dickens, Tolstoi e Thomas Mann. (Note-se que eu disse -disputa. Mas o eslavo me parece imbatível.)