Para o espectador que assiste nesta quinta, 31, a A Marcha, o longa de Nabil Ben Yadir talvez faça lembrar Selma, de Ava DuVernay, que foi indicado para o Oscar de melhor filme, em fevereiro. Não a mesma história, mas uma parecida, de marcha por direitos civis – basta substituir os afrodescendentes liderados pelo pastor Martin Luther King no filme norte-americano pelos muçulmanos que, na França do então presidente François Mitterrand, em 1983, marcharam contra o racismo.

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A Marcha começa nos Miguettes, um subúrbio de Paris, onde um jovem árabe de segunda geração, Mohammed, é atingido no peito por um disparo da polícia quando tenta ajudar o amigo, Hassan, atacado por cães da instituição. O fato gera revolta na comunidade e os mais radicais exigem uma retaliação, mas o próprio Mohammed, inspirado no exemplo de resistência pacífica do ‘Mahatma’ em Gandhi, de Richard Attenborough, que acabara de estrear – e ganhara o Oscar – acena com a marcha do título. Ela começa tímida, com poucos participantes, em outubro, e chega a Paris, em dezembro, como uma massa humana de 100 mil participantes, todos clamando que os árabe-franceses, a despeito da cor da pele, não são perigosos e devem ter os mesmos direitos.

Quando se deram os fatos narrados em A Marcha, a esquerda socialista estava no poder e um movimento popular transformara Ruhollah Khomeini no líder supremo que, a distância, em 1979, derrubara o Xá do Irã e instituíra no país a República dos aiatolás. Haviam se passado 30 anos da marcha e o filme do diretor belga surgia como uma celebração. Dois anos depois, quando A Marcha chega aos cinemas brasileiros, a causa pode continuar justa, mas os sangrentos acontecimentos em Paris, ao longo deste ano, de alguma forma produziram o acirramento da tensão contra o Magreb. É o que talvez, apesar de tudo, torne o programa mais interessante. O apelo ao diálogo, o reconhecimento do outro, há muito para fundamentar a distensão no filme de Nabil Ben Yadir.

Há um esforço muito honesto de reconstituição e veracidade, com a participação de atores de prestígio – além de talentosos. Tewfik Jallab, que faz Mohammed, havia coestrelado pouco antes Né Quelque Part com Jamel Debbouze, que aqui faz Hassan. Debbouze é um astro na França e ao redor dos dois, em participações muitas vezes episódicas, destacam-se Lubna Azabal (de Incêndios), Hafsia Harzi (de O Segredo do Grão) e Olivier Gourmet. Mas o filme, por qualidades que tenha, tem também defeitos, e graves. Centrado na marcha, ele cria dois ou três personagens de certa densidade (Mohammed, Hassan, etc.) e utiliza todos os demais para fazer avançar o relato, equilibrando a macro-história com as outras, micro, que vão dando sustentação cômica e/ou dramática ao relato. Até pela presença de Jamel Debbouze, o mix humor/drama está na essência de A Marcha.

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Os encontros pelo caminho expõem as contradições de um país dividido entre a vanguarda socialista no poder e a maioria silenciosa conservadora, quando não francamente reacionária. O que realmente aumenta o envolvimento é a escalada racista – como a repercussão da morte do jovem árabe lançado pela janela do trem. A todas essas, o filme, com roteiro de Nadia Lakhdal, não idealiza e mostra as fissuras do grupo. No começo, o padre católico (Olivier Gourmet) é decisivo para dar união e legitimidade aos manifestantes, mas, com o tempo, uma ala, não necessariamente radical, começa a se sentir incomodada por ter um cristão como porta-voz do Magreb. A despeito de tudo o que ele fez, Kheira (Lubna Azabal) lhe joga na cara, que, como ‘branco’ e católico, o padre não pode representá-la. A marcha antirracista deixa claro que boa vontade não é tudo nem resolve dissensões. O racismo pode estar em toda parte, e por quem não se espera. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.